RESENHA: Contos Completos (Vol. 1) - Liev Tolstói


      Tolstói é um dos autores mais incríveis que já li. Mergulhar nos contos do autor compilados nessa maravilhosa edição da Companhia das Letras, que possui uma introdução de Rubens Figueiredo fundamental para entendermos o significado de Tolstói para a literatura mundial, foi uma jornada de muito aprendizado e crescimento. E olha que essa foi só a primeira parte, ainda tem o volume dois pra ler! Como esse é um livro de contos que vai tratar dos mais variados assuntos, desde críticas sociais até guerra e religião, optei por abrir mão da resenha e compilar aqui algumas anotações que fiz durante a leitura. Selecionei alguns contos que me tocaram mais fundo e abaixo compartilho minhas impressões e alguns trechos do livro.



      "Como podem as pessoas viver como se não tivessem espaço neste mundo bonito, sob este céu estrelado e imensurável? Como é possível, em meio a essa natureza fascinante, persistir na alma do homem o sentimento de rancor, de vingança ou a paixão de aniquilar seus semelhantes? Parece que tudo de ruim no coração do homem deveria desaparecer em contato com a natureza - essa expressão imediata da beleza e do bem."



      Em "Memórias de um Marcador de Pontos de Bilhar" temos um claro exemplo de como a sociedade é capaz de corromper o homem. Nekhliúdov é um nobre que se vê cada vez mais afastado de seus sonhos e objetivos após chegar a Petersburgo em busca de glórias e encontrar sua perdição. É muito intrigante acompanhar a derrocada do personagem até o seu tráfico fim. Abaixo segue alguns trechos que destaquei:
      "Deus me deu tudo que um homem pode desejar: riqueza, um bom nome, inteligência, objetivos nobres. Eu queria aproveitar a vida e pisoteei na lama tudo o que me era caro. Não fiz nada desonroso, não fui infeliz, não fiz nada criminoso; mas fiz algo pior: matei meus sentimentos, minha inteligência, minha juventude. Fui capturado numa rede infame da qual não consigo me soltar e com a qual não consigo me acostumar. Caio e caio o tempo todo; sinto minha queda... e não consigo detê-la."
      "Um terrível instante de relaxamento, de baixeza, que nunca esqueço, obrigou-me a voltar à razão. Fiquei apavorado quando vi o abismo imensurável me que separava daquilo que eu queria e podia ser. Em minha mente, surgiam esperanças, sonhos e pensamentos da minha juventude. Onde estavam as ideias radiosas sobre a vida, a eternidade, Deus, que com tamanha clareza e força enchiam minha alma? Onde estava a gratuita força do amor, que aquecia meu coração com um calor agradável? Onde estava a esperança no desenvolvimento, a empatia com tudo o que é belo, o amor às pessoas, aos próximos, à glória? Onde estava a ideia de dever?"
      "Antes achava que a proximidade da morte elevaria minha alma. Enganei-me. Daqui a quinze minutos não existirei mais, porém meu mode de ver não mudou em nada. Vejo, ouço e penso da mesma forma; as mesmas estranhas inconsequências, embriaguez e leviandade nos pensamentos, tão contrárias à integridade e à lucidez que só Deus sabe por que foram dadas ao homem sonhar. Os pensamentos sobre o que virá além-túmulo e sobre o que irão falar amanhã de minha morta na casa da tia Rtícheva se apresentam ambos com a mesma força em minha mente. Que criação incompreensível é o homem!"



      "Sim, no bastião e na trincheira estão erguidas bandeiras brancas, o vale florido está repleto de corpos fétidos, o lindo sol desce na direção do mar azul, e o mar azul, ondulante, reluz sob os raios dourados do sol. Milhares de pessoas se aglomeram, observam, falam e sorriem umas para as outras. E tais pessoas - cristãs, que professam a mesma grande lei do amor e da abnegação, ao ver aquilo que fizeram, não cairão de repente de joelhos, com pesar, diante Daquele que, tendo lhes dado a vida, depositou na alma de cada um, junto com o temor da morte, o amor ao bem e ao belo e, com lágrimas de alegria e felicidade, não se abraçarão como irmãos? Não! Os trapos brancos são enrolados - e de novo assoviam os instrumentos da morte e do sofrimento, de novo jorra o sangue inocente e ouvem-se gemidos e impropérios."



      Em mais um conto instigante, Tolstói nos conta a história de Nekhliúdov, um jovem príncipe que larga seus estudos da universidade para se dedicar a vida no campo, administrando a fazenda da família. Nekhliúdov toma essa decisão depois de ver a vida miserável que os mujiques que trabalham na propriedade levam. Acreditando que possa dar uma vida mais digna aos mujiques, o príncipe assume a administração da fazenda, mas as coisas não saem como ele imaginou. Acostumados a uma vida difícil nas mãos de um ex-administrador linha dura, os mujiques logo estranham as mudanças. Alguns se tornam preguiçosos, outros mergulham em seus vícios e tem aqueles que estão tão apegados a vida que levavam que simplesmente ignoram a oportunidade de prosperar dentro da fazenda. Por mais que se esforce, Nekhliúdov não consegue por seus planos em prática.
      O conto levanta uma reflexão importante sobre o nosso papel diante do governo e da sociedade. Os mujiques parecem preferir levar uma vida dura nas mãos de um sistema no qual tenham a quem culpar, do que tentar tomar as rédeas da própria vida e se arriscar a prosperar quando têm a oportunidade. Isso acontece na nossa sociedade atual?



      Tolstói é mesmo incrível! No conto "Iliás" o autor russo precisou de apenas quatro páginas para tocar o leitor e ensinar uma lição valiosa. Nesse curto conto vamos acompanhar a história de Iliás e sua família. Iliás era de origem pobre mas com muito trabalho e dedicação sua fazenda prosperou. Dono de muitas terras e de um grande rebanho, se tornou um rico e famoso fazendo da região. Com sua mulher teve três filhos e durante muito tempo levou uma vida digna próxima a de um nobre.
Mas com o passar dos anos as coisas foram desandando para Iliás. Dois de seus filhos morreram, o outro brigou e foi embora. A seca matou as plantações. Ladrões levaram o gado. Aos poucos o rico fazendeiro teve que ir se desfazendo de suas terras para pagar dívidas e sua propriedade foi sucumbindo. Por fim, Iliás e a esposa perderam tudo que tinham e tiveram que ir morar com os vizinhos, para quem começaram a trabalhar em troca de comida e abrigo. Uma noite, na mesa do jantar, Iliás e sua espora são questionados se não sentem falta da felicidade que tinham e agora perderam. Ao que respondem:
      "Procuramos a felicidade por meio século e, enquanto éramos ricos, nunca a encontramos; agora não nos restou nada, fomos ganhar a vida trabalhando para os outros, e encontramos tamanha felicidade que não precisamos de nada melhor."
      "Éramos ricos, eu e o velho não tínhamos um minuto de sossego; não conversávamos, não pensávamos na alma, não rezávamos para Deus. Quantas preocupações!. Agora eu e meu velho acordamos, sempre falamos em amor, em concórdia, não temos nenhum motivo para discutir..."
      Os ouvintes não conseguem acreditar que Iliás e sua esposa sejam mais felizes agora do que antes.
      "Não riam, isso não é brincadeira, mas sim a vida humana. Fomos tolos, eu e a velha, e choramos no passado por termos perdido nossa riqueza, mas agora Deus nos revelou a verdade e nós a revelamos a vocês, não para nossa satisfação, mas para o seu bem."
      Ou seja, o ideal de felicidade para você pode não ser o ideal de felicidade para o outro. Ás vezes concebemos na nossa vida que o ideal de felicidade é ter dinheiro e posses materiais, somos bombardeados com esse incentivo o tempo todo e em todo lugar, mas a verdadeira felicidade devemos procurar dentro da gente e nas pequenas coisas.



      Nesse conto Tolstói vai nos contar a história de Pakhom, um proprietário de terras que nunca está satisfeito com o que tem e sempre está em busca de uma propriedade melhor e mais ampla para que possa viver. Ele acaba atrelando essa condição à sua própria felicidade e por isso passa grande parte do conto migrando sempre em busca de uma terra melhor. Até que um dia ele chega a terra dos basquires, grupo étnico turco que habita a Rússia. Os basquires têm costumes diferentes e na sua região a terra é vendida não pela medida mas sim pelo dia. Isso mesmo: ao comprar uma terra, o futuro proprietário paga uma quantia e parte de um ponto específico assim que o sol nasce. Ao pôr do sol ele deve estar de volta ao ponto marcado e a distância do perímetro percorrido equivale a terra adquirida. Mas caso ele não esteja de volta ao ponto marcado no momento em que o sol de pôr, perderá seu dinheiro e o direito à terra. Pakhom aceita a forma de negociar dos basquires mas por conta de sua ganância acaba pagando um preço bem mais caro. Ele não resiste ao horizonte que está à sua frente e segue sempre em frente, almejando adquirir o máximo de terra para sua futura propriedade. O sol começa a se pôr e ele se desespera, corre e se esforça. Mas é tudo em vão. Pakhom esgota suas forças ao alcançar o ponto marcado, sucumbe e é enterrado em um simples espaço de terra grande o suficiente apenas para que caiba o seu corpo.
      O conto traz muita reflexão sobre o sentido da vida e o tempo que empreendemos na busca pela felicidade, que muitas vezes nem está nas coisas que acreditamos estar. Entendi a a corrida de Pakhom como uma alusão ao nosso modo de viver: nunca satisfeito com o que temos, sempre querendo mais, pensando em um futuro que nem sabemos se vai chegar, nos apegando as posses e bens materiais. Tudo isso enquanto nossa vida passa bem diante dos nossos olhos, somos engolidos pelo tempo e quando nos damos conta a vida já passou e todos nós terminamos só com um pequeno pedaço de terra.

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