RESENHA: Caçadores de Nazistas - Andrew Nagorski

      Quando pensamos em caçadores de nazistas a primeira imagem que nos vem a mente costuma ser algo parecido com o famoso personagem James Bond, agente secreto eternizado no cinema por Sean Connery na década de 60. Muito dessa mitificação teve origem na ficção, tanto literária quanto cinematográfica, na qual os caçadores costumam ser retratados como agentes vingativos, altamente treinados e que se arriscam loucamente na linha de frente para perseguir os nazistas, esses que por sua vez costumam ser retratados como monstros sanguinários e psicopatas, ainda com algum poder. Quando na verdade, na maioria dos casos, os caçadores de nazistas são jornalistas, historiadores e promotores, que passam grande parte de seu tempo realizando pesquisas em bibliotecas e desatando nós burocráticos nos tribunais. Quanto aos nazistas que ocuparam algum cargo de comando no Terceiro Reich, em sua maioria são pessoas que levam uma vida normal e ás vezes até reclusa. Têm família, cães, gatos, um carro e um emprego comum. Apenas em alguns raros casos a realidade chegou bem perto da ficção. Nesse livro o jornalista americano Andrew Nagorski joga alguma luz na vida e carreira daqueles que ficaram conhecidos como caçadores de nazistas, desmistificando a imagem hollywoodiana que aprendemos a construir deles e até mesmo dos nazistas.


Para entendermos como surgiram os caçadores e o que desencadeou sua perseguição aos nazistas, primeiro é preciso compreender o cenário do pós-guerra. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial os Aliados já pensavam na guerra que estava por vir, a Guerra Fria. E tudo que o povo alemão queria era recolher os cacos e tentar reconstruir seu país, mesmo que isso custasse o precoce esquecimento do passado recente (e esse era um preço que a grande maioria dos alemães estava mais do que disposta a pagar). O Julgamento de Nuremberg foi o primeiro passo para se tentar fazer justiça, mas se formos considerar que apenas nazistas das mais altas patentes foram julgados e somente doze deles foram condenados à morte, fica evidente que essa era só a ponta do iceberg. EUA, Reino Unido, França e União Soviética não chegavam a um acordo definitivo sobre a melhor forma de julgar os nazistas. Os russos, instigados por Stalin, acreditavam na justiça do "olho por olho, dente por dente". Os americanos queriam levar os nazistas a grandes julgamentos acreditando que isso era não só uma forma de punição mas de registro histórico também, o que era visto por muitos como sensacionalismo. A linha entre justiça e vingança era muito tênue e conforme os horrores dos campos de concentração eram descobertos a tensão ia aumentando.


Um grupo de judeus no campo de concentração de Auschwitz.


Enquanto as condenações recaíam sobre os nazistas de altas patentes, e mesmo assim apenas para aqueles contra os quais as provas eram irrefutáveis, muitos guardas de campos de concentrações e superiores de patentes mais baixas acabaram escapando sob a alegação de que estavam apenas cumprindo ordens de seus superiores. Isso levantou outra questão: como julgar as patentes mais baixas? Mesmo quando não haviam provas concretas que ligassem um comandante de campo de concentração diretamente a execução de judeus, era sabido que ele fazia parte de uma engrenagem da máquina de matança de Hitler. Se fossem levar todas as peças dessa máquina a julgamento os processos iriam se arrastar por um longo tempo. Enquanto se preparavam para a Guerra Fria, EUA e URSS estavam muito mais preocupados em se aproveitar do processo de desnazificação da Alemanha para recrutar cientistas, médicos, físicos e outros conceituados especialistas alemães das mais diversas áreas e da mais alta capacidade. Começava a se perder o interesse em julgar os nazistas.


Julgamento de Nuremberg.


Como se já não bastasse a impunidade, dos poucos que foram condenados em julgamentos anteriores muitos foram absolvidos posteriormente ou tiveram a pena reduzida. Entravam em cena então os caçadores de nazistas. Motivados pelo senso de justiça, esses caçadores fizeram bem mais do que apenas perseguir nazistas. Enquanto investigavam, pesquisam, estudavam e faziam seus contatos, esses caçadores tiveram que lutar arduamente para convencer o resto do mundo e a própria Alemanha da importância de relembrar o passado. A persistência dos caçadores no assunto ajudou muito a desencadear importantes reflexões, como por exemplo: o que levou o instruído povo alemão a seguir os ideais de Hitler? Quando os nazistas começaram a ser caçados e interrogados, a imagem que se tinha deles, de psicopatas sanguinários, foi desmistificada. Em sua maioria se mostraram pessoas altamente instruídas, com formação acadêmica e uma carreira que poderia ter sido de sucesso. Mas quando presos, em sua defesa alegavam que só estavam seguindo ordens. Por quê? Jogar toda a culpa em seus superiores se tornou lugar comum nos julgamentos. Isso desencadeou um estudo sobre regimes totalitários e o desaparecimento do senso de responsabilidade individual. Até que ponto um regime totalitário pode tornar uma pessoa má? É necessário que o indivíduo já tenha uma pré-disposição a ser assim para se deixar levar dessa forma? Convencer as pessoas a relembrarem e refletirem sobre um passado obscuro não era uma tarefa fácil, mas necessária. O autoexame do povo alemão provocado por essas reflexões levou jovens que nasceram depois da guerra a levantarem questões profundas, como por exemplo: qual papel seus pais haviam desempenhado durante o Holocausto? E assim muito alemães descobriram da noite para o dia que seu pai, seu vizinho ou seu professor, havia sido um nazista que despachara milhares de judeus para a morte.


Adolf Hitler sendo ovacionado pela multidão.


O livro traz muitos relatos de caçadas, entre eles os famosos casos de Klaus Barbie (Açougueiro de Lyon), Herbert Cukurs (Carrasco de Riga), Ilse Koch (Cadela de Buchenwald), Josef Mengele (Anjo da Morte), Rudolf Hoss e talvez o mais conhecido deles, Adolf Eichmann. Embora eu acredite que a leitura possa ser melhor aproveitada se feita após a leitura de um livro de história da Segunda Guerra, pois este aqui é mais focado nos detalhes sobre as investigações e as estratégias adotadas pelos caçadores para levar os nazistas ao tribunal, ainda assim é uma leitura muito fluída, reflexiva e que não se apega somente aos detalhes técnicos. Em alguns pontos o livro exige um pouco de pesquisa, acho que faltaram algumas notas mas nada que comprometa a experiência. São muitos os nomes e logo no início do livro nos deparamos com um breve resumo sobre quem é cada caçador e cada caçado. Essa lista é de grande auxílio durante a leitura, tive que recorrer a ela algumas vezes. O livro também conta com uma sessão de fotografias bem interessante.


Simon Wiesenthal, um dos mais famosos, e também polêmicos, caçadores de nazistas.


Os caçadores de nazistas estavam longe de ser um grupo perfeito de justiceiros. Aliás, eles sequer formavam um grupo. Apenas em raras ocasiões havia troca de informações. Na maior parte do tempo era comum eles se tratarem como rivais, disputando os holofotes e os créditos pelas prisões, e muitas vezes discordando das condenações impostas às suas caças. Mas o papel desempenhado por eles foi crucial para manter viva a memória de um dos períodos mais sombrios da humanidade. Incansáveis em seu árduo trabalho, eles botaram o dedo na ferida enquanto o resto do mundo só queria deixá-la cicatrizar e tocar a vida adiante. A inabalável busca pela justiça, a coragem de desmascarar criminosos de guerra e o empenho em forçar a humanidade a encarar e lidar com o seu lado mais feio, renderam e ainda rendem frutos até os dias de hoje. Só a partir dos anos 2000 foi que as patentes mais baixas que serviram no Terceiro Reich começaram a ser condenadas de fato. A prisão e condenação de velhinhos de mais de 80 anos foi criticada por uns e elogiada por muitos outros, afinal nunca é tarde para se fazer justiça. E essa também é a mensagem que esse livro nos passa. A Alemanha Nazista e tudo o que a envolveu nunca devem ser esquecidos. Estamos em uma década que provavelmente será a última em que pessoas que viveram os horrores da Segunda Guerra Mundial ainda estão entre nós. É estranho pensar que daqui a pouco não restará no mundo ninguém que viveu aquela época. Não podemos mais contar com os caçadores para nos relembrarem, essa função agora pertencerá aos livros e documentos históricos, e caberá a cada um de nós manter viva essa memória e os olhos bem abertos para qualquer indício de repetição. Que o serviço prestado pelos caçadores de nazistas não tenha sido em vão.


"Tarde, mas não tarde demais."
Slogan do programa "Última Chance", campanha para rastrear criminosos nazistas já em idade avançada.

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