RESENHA: A Cidade e as Estrelas - Arthur C. Clarke

      Em 1953, Arthur C. Clarke publicou seu primeiro romance: "Against the Fall of Night". Embora bem recebida, a obra veio acompanhada de insatisfação por parte do autor. Clarke começou a escreve-la em 1937 e chegou até a publicá-la como novela numa revista pulp, em 1948. Mas os 16 anos que separam a concepção da obra e sua publicação final em 1953, foram cruciais para a explicar o motivo dessa insatisfação. Clarke era um estudioso e divulgador científico, logo percebeu o quanto os campos da ciência haviam progredido desde a concepção inicial do romance e o quanto ele soava ultrapassado quando foi finalmente publicado. Ao mesmo tempo em que os avanços científicos refutaram alguns conceitos presentes em "Against the Fall of Night", eles também abriram um novo leque de possibilidades que o autor poderia explorar. Clarke decidiu então reescrever e expandir sua obra, nascia assim "A Cidade e as Estrelas".


      No passado distante, o homem saiu para explorar o espaço e conquistou muitos mundos. Por milhões de anos a civilização se espalhou pela galáxia, anexando sistemas e formando assim o Império Galáctico. Esses foram os anos de ouro e glória da raça humana, quando ela reinava sozinha no universo. Até que um dia os Invasores chegaram e, de repente, o homem se viu diante de um inimigo poderoso e incompreensível. Vendo suas fronteiras encolherem e seu império ruir, não restou outra saída a humanidade senão a retirada desesperada para o Sistema Solar. Sob o ataque implacável dos Invasores, o último ponto de fuga do homem, a Terra, quase não sobreviveu. O planeta teve seus oceanos extintos e foi reduzido a areia. Tudo o que restou em meio ao deserto foi Diaspar, cidade onde a raça humana vive confinada a um bilhão de anos. Isso graças a um pacto feito com os Invasores, no qual eles deixariam o que restou da humanidade viver em paz sob a condição do homem nunca mais se aventurar fora de suas fronteiras. E assim, a raça que um dia conquistou as estrelas se viu reduzida a prisioneira em seu próprio mundo. Pelo menos essa é a história contada a todos os habitantes de Diaspar.


      Diaspar foi projetada pelos senhores da mente e da matéria para dar a seus habitantes tudo que o homem precisava, sem a necessidade de ultrapassar suas fronteiras. O Computador Central é o responsável por manter tudo funcionando da forma como foi planejada, desde a estrutura física quanto social da cidade. Os conceitos de nascimento e morte foram abolidos em Diaspar. Crianças e idosos não existem. Lá ninguém nasce, as pessoas saem da Casa de Criação, local onde recebem os moldes de vidas passadas. E a morte nada mais é que um processo de reciclagem. Quando alguém "morre" seus dados são preservados nos Bancos de Memória, esses dados só precisam ser imputados em uma nova "casca" na Casa de Criação para que a mesma mente desperte em um novo ciclo de existência. Não é o caso de Alvin, ele é um Único. De tempos em tempos, em um intervalo de milhões de anos, surge um Único em Diaspar, não se sabe se por acidente ou por algum erro da Casa de Criação ou do Banco de Memórias. Um Único é alguém que vem ao mundo pela primeira vez, sem memória ou consciência programada embutidas, portanto, sem os instintos adquiridos ao longo de um bilhão de anos de adaptação pelos outros habitantes de Diaspar.
      O banimento da morte e do nascimento cobra seu preço. Habitada sempre pelas mesmas mentes, a sociedade de Diaspar é extremamente conservadora. Inércia social e congelamento da cultura são apenas alguns dos sintomas que permeiam sua estrutura. Ao longo do bilhão de anos em que viveram confinados entre os muros da cidade temendo a ira dos Invasores, seus habitantes desenvolveram medo do céu e do horizonte distante. Os dias de explorar as estrelas e mundos desconhecidos ficaram para trás e agora os terráqueos se contentam com as Sagas, espécie de videogame ultrarrealista que permite simular aventuras diversas. Alvin, por ser um Único, não compreende esse comportamento e, desenvolvendo um fascínio por admirar aquilo que os outros tanto temem, logo começa a questionar o meio em que vive. Recusando a se adaptar a uma sociedade estagnada, Alvin parte em busca de respostas e enquanto tenta compreender melhor qual é o seu papel como um Único, ele começa a desvendar os mistérios por trás da história que até então era contada e tida como verdade incontestável pelos habitantes de Diaspar. Assim como "O Fim da Infância" e "2001 - Uma Odisseia no Espaço", esse livro tem um final surpreendente e grandioso.


      As barreiras que impediam as pessoas de saírem de Diaspar eram não só físicas, mas também psicológicas. Seus habitantes foram reduzidos a dados de computador e todo seu comportamento previamente programado. Acostumados a simplesmente materializarem, com a ajuda das máquinas, tudo o que precisassem, os últimos indivíduos da espécie humana vivam em sua utopia privada. É muito interessante e assustador pensar como uma cultura pode se enraizar em uma sociedade a ponto de estagna-la, instalando nela o pensamento de rebanho e banindo o pensamento crítico e questionador. E nesse caso específico nem foi preciso um governo totalitário para isso, como é comum vermos nas distopias. Aqui os mecanismos da cidade e do Computador Central são tão superiores e misteriosos que até mesmo os líderes de Diaspar, grupo conhecido como o Conselho, estão em suas mãos assim como o resto da sociedade. "Cidade e as Estrelas" é um livro que possui muitas camadas: crítica social, choque cultural e negacionismo científico. É possível fazer até mesmo uma analogia da trama de Diaspar ao nosso comportamento psicológico, afinal, quantas vezes nos autossabotamos construindo barrerias psicológicas em torno de nós mesmos? Esse é um livro que acredito que irá agradar não só os fãs de ficção científica, pois transcende muito o gênero, como irá agradar a qualquer um que goste de leituras mais reflexivas e instigantes. Aliás, esse é um dos pontos fortes do Clarke. Não à toa ele é um dos meus autores favoritos de toda a literatura. Incrível a sagacidade que ele conseguia imprimir já no começo de sua carreira como escritor de romances. Fica aqui só uma crítica quanto a essa edição da Devir: apesar da capa ser linda e vir até com um marca páginas, pecaram muito na tradução e revisão. O livro está repleto de erros grosseiros de português e de concordância. E além disso as folhas são de um branco ofuscante, o que torna a leitura um tanto cansativa aos olhos.

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