RESENHA: História do Cerco de Lisboa - José Saramago

      O Cerco de Lisboa foi um fato histórico que aconteceu no século XII, mais precisamente no ano de 1147, e integrou o processo de Reconquista cristã da Península Ibérica. A cidade de Lisboa era então dominada pelos mouros, que contavam com os poderosos muros da cidade para defendê-los dos ataques inimigos. Diante dos muros intransponíveis, portugueses e cruzados, que haviam formado aliança, sitiaram a cidade enquanto experimentavam diferentes estratégias na tentativa de furar o bloqueio muçulmano. Depois de várias semanas, com o auxílio de torres móveis de madeira e outros aparatos de guerra, os cristãos finalmente conseguiram empreender um ataque efetivo e, se aproveitando do enfraquecimento dos mouros que devido ao cerco já sofriam com a fome e a peste, reconquistaram a cidade que viria a se tornar a capital de Portugal mais tarde, em 1255. Agora que temos alguma ideia, mesmo que vaga, do que foi o Cerco de Lisboa, podemos falar sobre o livro.


      Raimundo Silva é um revisor de textos. Ele trabalha para uma editora que tem muita confiança no seu trabalho devido ao longo tempo de serviços prestados e sua eficiência nas revisões. A confiança depositada no revisor é tanta que ao escrever um livro de história sobre o Cerco de Lisboa, o autor do livro dá a Raimundo a liberdade de revisar sua obra e entregar diretamente a editora para a impressão depois de finalizado o processo de revisão, sem necessidade de um novo aval do autor, que seria o procedimento de praxe. Diante de tal liberdade e sem um motivo aparente, Raimundo decide, por conta e risco, incluir no livro uma palavra que não constava no texto original do autor: um simples "não" no início de uma frase afirmativa. Muito mais do que alterar um contexto histórico, esse "não" terá consequências muito maiores na vida do revisor.


      Esse é um livro que possui muitas camadas. Ao mesmo tempo em que ele permite ao leitor um vislumbre de como funciona o mercado editorial e qual o papel do autor e do revisor enquanto profissionais, ele também propõe um debate sobre a veracidade daqueles que são tidos como fatos históricos e a forma como eles são relatados. Mais do que isso, Saramago levanta a importância de questionar aquilo que a sociedade muitas vezes aceita como verdade absoluta sem levantar a menor sombra de dúvida. O "não" que Raimundo descaradamente inclui na "História do Cerco de Lisboa" possui muitos sentidos: é um grito de rebeldia contra a editora e todo o setor editorial, é uma bandeira de dúvida e questionamento que ele levanta diante da história e, talvez o mais instigante, é a forma que o revisor encontrou para  romper com a vida ordinária que levava até então. Raimundo era do tipo solitário que levava uma vida regrada e sem graça, comia sempre as mesmas comidas e andava sempre pelos mesmos caminhos. De repente, no auge de seus cinquenta e poucos anos, Raimundo, conformista que só, percebe que nunca é tarde para mudar. Girando em diferentes linhas narrativas, Saramago brinca com a ficção e a história da mesma forma, e com a mesma facilidade, que uma criança maneja seus brinquedos. Em "História do Cerco de Lisboa" o autor português apresenta uma proposta que não vemos todos os dias. Não diria que é um livro complexo, mas apenas diferente. Saramago já proporciona uma experiência única de leitura por si só, digamos que o que temos aqui é isso elevado ao quadrado: uma experiência "estranha" para aqueles que já estão acostumados com a "estranheza" de Saramago.

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