RESENHA: A Aranha Negra - Jeremias Gotthelf

      Imagine que a Peste Negra, a pandemia que varreu da face da Terra aproximadamente um terço da população mundial durante o século XIV, tenha sido causada não pela bactéria Yersinia pestis e sim em decorrência de um pacto com o diabo. Mesclando fatos históricos, passagens bíblicas e elementos do folclore suíço e alemão, o pastor protestante Albert Bitzius, sob o pseudônimo de Jeremias Gotthelf, constrói aqui uma poderosa narrativa em formato de novela, usando com maestria a técnica do emolduramento narrativo (uma história dentro de uma história). O resultado é uma aclamada obra que conquistou célebres admiradores, entre eles Thomas Mann, que dizia admirá-la "como praticamente nenhuma outra peça da literatura mundial".


      A narrativa tem início no século XIX, no vale de Emmental, onde vamos acompanhar os preparativos de uma tradicional família suíça para o batizado de seu mais novo membro. Aqui também vamos ser apresentados a algumas das crenças e costumes da região, o que nos permite conhecer um pouco mais da cultura popular local. Muitos familiares vêm de longe para conhecer a nova casa da família e acompanhar o batizado do recém-nascido. Em um dos intervalos entre uma refeição e outra, a família se reúne em torno da casa para jogar conversa fora, é quando um pedaço de madeira enegrecido chama a atenção dos presentes, e o avô, patriarca da família, decide contar uma história.


      Nessa primeira narrativa do avô, somos levados ao século XIII. A região do vale estava então sob o domínio da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos (que foi fundada com a missão de acolher e cuidar dos cruzados feridos e doentes mas acabou, com o tempo, perdendo seu caráter religioso e sendo corrompida pelas intensas batalhas em terras pagãs) e era "governada" pelo déspota Hans von Stoffeln. Oprimidos pelo tirano comendador, os habitantes do vale levavam uma vida dura e repleta de miséria, e a esperança por dias melhores ia aos poucos se extinguindo. Foi quando o diabo apareceu e os propôs um pacto. E o povo desesperado, que acreditava já estar no fundo do poço, viu que era possível a situação piorar, e da forma mais grotesca. Essa narrativa corresponde ao primeiro surto de Peste Negra que atingiu a Suíça e ocupa a maior parte do livro. A segunda história narrada pelo avô se passa 200 anos depois, no século XV, e corresponde ao segundo e mais devastador surto da peste naquela região.


      A novela de Gotthelf possui muitas facetas e é repleta de simbolismo. O contexto histórico da Peste Negra é muito bem amarrado a ficção, costurando fatos e personagens reais com passagens bíblicas e crenças populares, adicionando elementos de horror e fantasia em alguns pontos. Além de rica em detalhes sobre a vida camponesa e o folclore local, a narrativa de Gotthelf ganha um sabor a mais nos momentos de tensão, quando o autor muda o tempo em que os eventos são narrados, dando a impressão de que estamos ali presenciando a ação. Danse Macabre, comportamento coletivo equivocado, o anticristo, o autoendeusamento... São muitos os elementos que podem ser encontrados na obra, mas o que mais me chamou a atenção foi o conceito de dualismo: a coexistência do bem e do mal, do sagrado e do profano, de Deus e do diabo (no caso, a aranha). A ideia de que seja necessário a presença do maligno para que os homens permaneçam tementes a Deus é um convite a reflexão.


      "A Aranha Negra" foi, e ainda é, objeto de muitos estudos nos campos da literatura e da filosofia. Essa edição da Editora 34 conta com um belo posfácio de Marcus Vinicius Mazzari, no qual o tradutor apresenta material de seus estudos bem como referências de outros estudiosos que analisaram a obra. A tradução também é primorosa. Além da forma peculiar de narrar, Gotthelf  usa e abusa do complexo dialeto suíço-alemão, o que com certeza exigiu muito do tradutor. Mas todos os termos, até mesmo aqueles que não têm uma tradução direta, são devidamente explicados e contextualizados, assim como os acontecimentos históricos e as passagens bíblicas, nas inúmeras notas de rodapé que o livro apresenta. Todo esse cuidado enriquece ainda mais a experiência de ler essa grande obra que é "A Aranha Negra".

Comentários