"Coisas extraordinárias aconteceram naquele verão de 1950", em Lima, no Peru, mais precisamente no bairro de Miraflores. Foi ali que Ricardo, órfão criado pela tia, passou sua infância e adolescência, entre bailes, mambos e memoráveis noites quentes. Mas o grande acontecimento daquele verão foi a chegada da chilenita. Lily logo ganhou o coração de Ricardo, mas ao mesmo tempo em que o encantava permanecia para ele um mistério, fria e distante. Tudo o que se sabia sobre ela, ou o que pelo menos se supunha saber, era que tinha vindo do Chile. Sobre seu passado e sua família, não havia nenhuma pista. E o que parecia ter sido apenas uma paixão platônica adolescente se vê reacendida quando Ricardo, já adulto e morando em Paris, reencontra a chilenita. Tem início então uma dança de encontros e desencontros, que vai passar pelos mais variados cenários e se dar em diferentes momentos da vida de nossos protagonistas.
Antes de mais nada preciso falar sobre a escrita do peruano Mario Vargas Llosa. Sua narrativa é muito envolvente e nos leva a devorar as páginas na tentativa de decifrar a menina má que dá título ao livro. O autor, que é um dos principais escritores da América Latina, conhecido por se aventurar nos mais variados gêneros sem perder a maestria, foi laureado no Prêmio Nobel em 2010 "por sua cartografia das estruturas de poder e de imagens, e sua mordaz resistência, revolta e derrota do indivíduo". Em contato com a menina má, só posso afirmar que qualquer prêmio é muito mais que merecido.
A começar pela ambientação, logo na primeira página do livro já estamos totalmente imersos no gostoso clima do bairro peruano de Miraflores. As noites quentes de verão, a música, a perda da inocência das crianças que estão entrando na adolescência, tudo isso compõe o sentimento que fluía pelas ruas do Peru dos anos 50. Clima muito diferente do que viria a se instalar alguns anos mais tarde, com a ditadura militar. Aliás, os cenários políticos estão muito presentes nessa obra e acompanham o leitor durante toda a narrativa. A Revolução Cubana, os protestos revolucionários que agitaram Paris nos anos 60, a contracultura que chegou a Londres na década de 70, as atividades da máfia japonesa Yakuza em Tóquio e a transição política dos anos 80 em Madrid são alguns dos cenários que vamos visitar e, graças a poderosa narrativa do autor, nos sentir completamente imersos. Além da cena política, a cena artística e social de cada região e de cada época também é muito detalhada. Esse grande e rico mosaico de cenários já seria uma obra de arte por si só, mas a coisa não para por aí.
O romance de Ricardo e Lily não é nada convencional. Os dois são completamente opostos. Ele: romântico, conformado e inclinado a levar uma vida rotineira e sem sustos. Ela: fria, instável, ambiciosa e disposta a fazer de tudo para conseguir o que quer, mesmo que para isso tenha que prejudicar outras pessoas em seu caminho. E por mais que a chilenita brinque com os sentimentos de Ricardo, saindo e entrando na vida dele como bem entender, ele simplesmente não consegue se desvencilhar dela. Criando para si a ilusão de que não se deixará cair na teia da menina má da próxima vez, mas caindo de joelhos sempre que ela retorna.
Essa é uma leitura que brinca muito com os sentimentos do leitor. Impossível permanecer indiferente perante o romance dessas duas criaturas tão opostas. Ricardo desperta na gente compaixão, piedade e até mesmo raiva por sua incapacidade de esquecer a chilenita e se colocar nas mais difíceis situações por causa desse amor. E a menina má está aqui para intrigar e irritar. Assim como Ricardo, somos atraídos inicialmente por seus encantos, mas logo que percebemos qual é o seu jogo começamos a desenvolver certa aversão pela personagem. Os momentos em que se dão os encontros do casal, sé que pode-se chamá-los assim, nos fazem refletir também em como a vida pode ser efêmera. E no final, quem levou a melhor? Ricardo, que dedicou grande parte de sua existência a um amor não correspondido e uma estável carreira de tradutor? Ou Lily, que com seu espírito livre e aventureiro sempre perseguiu a ascensão social e a riqueza, doa a quem doer?
Apesar desse ser um gênero que não costumo ler muito, "Travessuras da Menina Má" foi uma leitura excelente que me envolveu demais e me fez refletir sobre a vida. Poucas vezes me senti tão imerso num romance e numa ambientação como essa. Conhecer um novo autor, e mais ainda, a literatura de um novo país, foi uma experiência incrível. Llosa acaba de ganhar um cantinho reservado na minha estante a ser ocupado por outras de suas obras...
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