RESENHA: Martin Eden - Jack London

       Em 1906, o escritor norte-americano Jack London empenhou seus bens para viabilizar a compra de um navio, com o objetivo de dar a volta ao mundo. Nessa viagem foi concebido "Martin Eden", romance autobiográfico e tragicamente profético que veio a se tornar uma de suas maiores obras literárias. Publicado pela primeira vez em 1909, o livro vai nos contar a história do marinheiro que dá título ao romance. Afeiçoado a vida no mar, Martin Eden é um rude e boa-vida que desconhece as regras mais básicas de etiqueta. Um dia, envolvido em um incidente, Martin acaba sendo convidado para um jantar na casa dos Morse, família da alta esfera social californiana. Enquanto luta para esconder seu lado mais rústico, Martin se vê completamente arrebatado pelos encantos de Ruth, filha dos Morse. Mas o que parecia ser o começo de uma simples história de amor logo se mostra muito mais que isso quando Ruth, estudante de artes, permite a Martin um vislumbre do mundo que a cerca. O marinheiro se vê, de repente, em meio a livros, música, assuntos de política e de filosofia. À deriva, Martin logo percebe o gigantesco abismo sociocultural que o separa de Ruth e, lutando contra seu orgulho, decide renunciar à seu espírito de liberdade e por em prática um plano de reforma pessoal para conquistar a amada. Tem início uma verdadeira saga de reconstrução que envolve infinitas idas à biblioteca e intermináveis noites insones de estudos. Saga essa que irá acarretar profundas mudanças em Martin Eden, levando-o a tentar a carreira de escritor e a questionar o mundo e a sociedade à sua volta.

      "Martin Eden" é um livro que possui muitas camadas. A começar pelo choque cultural que existe entre Martin e Ruth. Ela: rica, casta, tem o pai como imagem de homem perfeito e tenta moldar Martin à sua maneira. Ele: humilde, grosseiro, promíscuo, mas disposto a mudar se preciso for para conquistá-la. Os opostos acabam se atraindo e o contraste entre as duas classes fica ainda mais nítido em meio aos diálogos que se dão entre os apaixonados. Ruth nutre seus preconceitos enquanto Martin descobre que estudo acadêmico não quer dizer, necessariamente, educação. A forma como cada um deles entende e consome a arte e a cultura também gera boas discussões. Martin sempre tenta aliar o conhecimento obtido com a vida prática, enquanto Ruth encara cada ensinamento apenas como mais uma etapa de seus estudos a ser cumprida. Jack London deixa aqui a sua crítica aos tradicionais métodos de ensino.

      A carreira de Martin como escritor nos permite ter uma boa ideia de como o setor editorial funcionava naquela época, quando os escritores iniciantes costumavam procurar revistas e jornais para a publicação de seus trabalhos. Como se não bastassem todos os preconceitos e falta de fé em sua carreira de escritor por parte de sua família, amigos e até mesmo de Ruth, Martin ainda tem que enfrentar a "máquina editorial". Durante todo o romance, enquanto Martin trava sua batalha com a incansável máquina e suas engrenagens, London faz fortes críticas ao setor. Em determinado ponto da narrativa, quando Martin precisa interromper seus escritos para trabalhar e garantir suas necessidades básicas, London também deixa implícito sua crítica ao método tradicional de trabalho que exige demais do empregado, sufocando assim sua inspiração e criatividade e levando-o a desenvolver vícios ao buscar o entorpecimento para aguentar uma vida dura. Mas a principal crítica que o livro traz é à sociedade, mais precisamente à burguesia. Conforme Martin avança em seus estudos e em sua carreira, a classe alta começa a se mostrar para ele muito diferente daquilo que imaginava e até mesmo decepcionante. O supérfluo, a estagnação, a tradução da felicidade em dinheiro, tudo isso o incomoda e entristece. Terá toda sua trajetória e reforma pessoal sido feita em vão?

      Na sua vida, você persegue os seus sonhos ou aquilo que os outros dizem que você deve perseguir? Seus sonhos são realmente seus ou apenas ideias plantadas na sua cabeça? Essas são algumas das perguntas que ficam na nossa mente após concluída a leitura da obra. Martin empenha uma verdadeira odisseia em busca de seus objetivos e, quando os alcança, descobre que aquilo que perseguiu com tanto ardor pode não ser aquilo que precisava afinal. Mas agora é tarde demais, sua trajetória o mudou a tal ponto que a ponte foi queimada, não sendo mais possível o regresso. Uma autobiografia? Um romance de formação? Uma obra que trata da sociedade, arte, cultura, política e filosofia? "Martin Eden" é tudo isso e mais um pouco. 

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