RESENHA: O Apanhador de Sonhos - Stephen King

       Em 1999, Stephen King sofreu um grave acidente que por muito pouco não lhe ceifou a vida. O escritor foi atropelado por uma van enquanto fazia uma de suas caminhadas nos arredores de sua casa de veraneio, no Maine. Sofreu traumatismo craniano, múltiplas fraturas, perfurações pulmonares e teve que ser submetido a várias cirurgias. Enquanto se recuperava lenta e dolorosamente, King começou a escrever "Câncer", romance que mais tarde (por sugestão de sua esposa, que achava o título original muito pesado) viria a ser publicado como "O Apanhador de Sonhos". A obra foi escrita em meio a doses cavalares de analgésicos e anestésicos, e reflete alguns dos momentos traumáticos pelos quais o autor passou durante o período recuperação. O próprio King afirma não gostar muito do romance, uma vez que o mesmo foi escrito sob forte efeito de drogas e remete a um dos momentos mais trágicos de sua vida. Odiado por muitos, "O Apanhador de Sonhos" tem os seus problemas, mas está longe de ser um livro ruim.

      25 anos atrás, em Derry, quatro amigos voltavam da escola quando pararam para ajudar um garoto que estava sendo agredido e humilhado por um grupo de rapazes mais velhos. O garoto que eles ajudaram, Duddits, era especial em mais de um sentido: era portador de síndrome de Down e também era uma espécie de "iluminado". Naquele dia, ao ajudá-lo, eles ainda não sabiam, mas Henry, Jonesy, Beaver e Pete, haviam criado uma conexão especial com Duddits. Muito além da amizade, eles desenvolveram uma conexão mental e, em diferentes graus, uma espécie de "sexto sentido". Foram bons aqueles tempos em Derry, mas ficaram pra trás. Veio a faculdade, o trabalho, a família e cada um seguiu seu caminho. Exceto Duddits, que viu seu estado de saúde definhar cada vez mais. Mas a amizade entre os quatro amigos permaneceu e uma vez por ano eles se reúnem para uma temporada de caça nos bosques do Maine. O encontro desse ano tinha tudo para ser como os anteriores, se não fosse pelos alienígenas. Mas é claro que ninguém sabia disso até nossos amigos receberem uma visita pra lá de estranha em sua cabana.

      Ao estilo de "It, a Coisa", "O Apanhador de Sonhos" vai tratar de adultos que se veem diante do desconhecido e para enfrentá-lo terão que lidar com assuntos do passado e se reconectarem a sua infância. Logo, temos aqui um livro recheado de flashbacks. Um dos elementos que mais gosto no King é a forma como ele escreve crianças e isso é muito bem explorado nos momentos em que revisitamos a infância dos personagens, em Derry. Flashbacks? Crianças? Derry? As semelhanças com "It" não param por aí e vão muito além da estrutura narrativa. Apesar das duas obras não possuírem conexão direta, temos aqui claras referências ao desaparecimento de crianças em Derry, a enchente que atingiu a cidade muito tempo atrás e ao palhaço assassino Pennywise. Não querendo fazer comparações mas cabe aqui um alerta para evitar muitas expectativas e frustração: não leia "O Apanhador de Sonhos" esperando algo muito próximo de "It". E muito disso se deve a peculiar narrativa do Apanhador, que acredito ser um dos principais motivos de crítica e abandono desse livro.

      Devido ao "sexto sentido" de Duddits e seus amigos e também aos poderes de uma raça alienígena, a obra envolve muita conexão mental, telepatia e leitura de mentes. Isso gera certa "confusão" narrativa. Alguns diálogos se passam somente na mente dos personagens e, ás vezes, até consigo mesmo. Muitas vezes um fato é narrado do ponto de vista de um personagem para, no capítulo seguinte, termos uma mesma versão dos fatos do ponto de vista ou mental de algum outro. Esses loops narrativos junto aos inúmeros flashbacks podem tornar a leitura um tanto cansativa e incomodar aqueles leitores que gostam de uma leitura mais dinâmica e fluída. Diria que pode incomodar até mesmo aqueles que estão acostumados com a escrita detalhada do autor, como foi o meu caso. Confesso que em alguns momentos me arrastei durante a leitura. Mas do meio pra frente a coisa melhora, acredite!

      King já escreveu ficção científica outras vezes, mas, pelo menos na minha experiência, "O Apanhador de Sonhos" foi a melhor conexão que ele conseguiu fazer entre o sci-fi e o horror. O clima de mistério e o medo do desconhecido permeiam grande parte da leitura. Em certo momento, o autor quase nos leva a pensar que a história poderia evoluir para algo parecido com "A Guerra dos Mundos", de Wells, ao colocar militares na história. Mas sabe como é, King nunca entrega o que um leitor espera. Preferindo explorar o drama a obscuridade humana, ele segue por outros caminhos.

      Escrito em um momento difícil e traumático, "O Apanhador de Sonhos" está longe de figurar entre os melhores livros do mestre. Acredito que, mais por sua particularidade narrativa do que pela história em si, as críticas a obra sejam, em grande parte, compreensíveis. Nada recomendável para leitores de primeira viagem e indicada com ressalvas até mesmo para os fãs de King. A contestada adaptação cinematográfica de 2003 não ajudou muito a melhorar sua imagem. Claro que todo o elemento telepático da obra é um obstáculo para qualquer adaptação. Talvez um novo filme, com a tecnologia de hoje, se bem feito, fique melhor e possa atrair mais pessoas para o mundo do Apanhador.

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