RESENHA: No Coração do Mar - Nathaniel Philbrick

      No início de século XIX, a Ilha de Nantucket fervilhava em atividade baleeira. Enquanto o resto dos EUA se via ameaçado pela crise financeira, o mercado de óleo de baleia se aquecia e Nantucket prosperava, indo na direção contrária da crise. No dia 12 de agosto de 1819, o baleeiro Essex partiu do porto de Nantucket sob o comando do capitão George Pollard Jr. Próximo a essa data, um cometa havia sido avistado cruzando os céus, há registros da passagem de uma nuvem de gafanhotos pela região e boatos de que um monstro marinho havia sido avistado naquelas águas também surgiram. Logo no início da viagem, uma tempestade causou danos ao Essex e quase forçou o retorno da embarcação ao porto de Nantucket. Mas nada disso seria mau presságio suficiente para o destino que aguardava por Pollard e seus homens nas águas do Pacífico. No dia 20 de novembro de 1820, na Região ao Largo, o baleeiro Essex foi abalroado por um cachalote enfurecido de aproximadamente 80 toneladas e 26 metros de comprimento. Nunca antes um navio havia sido atacado diretamente por uma baleia. O Essex afundou rapidamente e seus homens, desesperados, pouco conseguiram salvar dos destroços do navio e ficaram divididos em três botes, à deriva, durante três meses em alto mar.


      Escassez de provisões, desidratação, hipernatremia (alta concentração de sódio no sangue), hipotermia, tempestades, ventanias, ataque de orcas e de tubarões, esses são apenas alguns dos problemas que os náufragos do Essex tiveram que enfrentar. Eles desceram ao mais baixo nível da degradação humana e moral, perderam sua civilidade, tiveram que beber da própria urina e recorrer ao último recurso para sua sobrevivência, o canibalismo. Estudos posteriores mostraram que o estresse traumático sofrido pelos homens do Essex foi semelhante ao que os judeus enfrentaram nos campos de concentração nazistas. Aqueles que não morreram de inanição, sucumbiram a loucura, e mesmo os poucos que sobreviveram até o dia do resgate, carregaram cicatrizes psicológicas pelo resto de suas vidas.


      O abalroamento do baleeiro Essex faz parte da história americana, mas durante muito tempo sua história foi contada de forma muito fragmentada. Alguns dos sobreviventes escreveram suas memórias e historiadores também abordaram o assunto, como é o caso de Nathaniel Philbrick. O historiador e velejador americano, natural de Massachusetts, é diretor do Egan Institute of Maritime Studies e pesquisador do Nantucket Historical Association. Para compor "No Coração do Mar", o autor mergulhou em um profundo trabalho de pesquisa e o resultado é um livro-documentário muito rico em detalhes e fontes. A obra conta com ilustrações, fotos, mapas e muitas notas que enriquecem ainda mais a leitura. Vale ressaltar que essa não é uma história de aventura, a narrativa do livro se assemelha a um diário e a leitura pode parecer um pouco lenta ou detalhada demais para um leitor casual. Temos aqui, por exemplo, um capítulo inteiro dedicado a história e a cultura de Nantucket, desde sua colonização até sua consagração como capital mundial da caça à baleia, no século XIX. Assim como em Moby Dick, temos também alguns detalhes técnicos sobre navegação, o processo de caça e remoção de gordura e óleo das baleias, bem como a vida e comportamento dos cachalotes. Por esses e outros detalhes, acredito que essa leitura seja mais indicada para aqueles que realmente têm apreço por histórias de sobrevivência, ou interesse histórico nesse período, ou, assim como eu, sejam aficionados pela história de Moby Dick.

      Herman Melville se inspirou na história do baleeiro Essex para compor sua obra máxima. Em seu trabalho de pesquisa, o autor visitou a Ilha de Nantucket e chegou a se encontrar com o capitão Pollard. Moby Dick foi publicado pela primeira vez em 1851, 31 anos após o abalroamento do Essex. O fracasso de vendas praticamente encerrou sua carreira literária e deixou o autor morrer na obscuridade. Posteriormente, a obra conquistou o seu lugar entre os maiores romances da literatura mundial de seu século e hoje já faz parte da cultura popular. Conhecer a história que inspirou uma das minhas obras favoritas foi uma experiência incrível. Apesar de suas diferenças: "Moby Dick" se concentra no conflito entre o capitão Ahab e a baleia, "No Coração do Mar" trata da sobrevivência pós ataque; as duas obras se complementam e enriquecem uma à outra. Pretendo reler Moby Dick um dia e tenho certeza que minha experiência de releitura será muito mais proveitosa agora que conheço um pouco mais de sua origem.


      Hoje, a Ilha de Nantucket se tornou um grande ponto turístico e preserva a memória de sua história baleeira através de museus como o Whaling Museum, o Egan Maritime's Nantucket Shipwreck & Lifesaving Museum e o Nantucket Lightship Basket Museum. Quem sabe um dia eu venha a visitá-los. Seria uma experiência única para um fã de Moby Dick e da história do baleeiro Essex.


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