RESENHA: Café da Manhã dos Campeões - Kurt Vonnegut

      Publicado pela primeira vez em 1973, "Café da Manhã dos Campeões" foi, nas palavras do próprio autor, um presente a si mesmo em seu aniversário de cinquenta anos. Buscando exorcizar seus demônios, Vonnegut reuniu aqui tudo de pior que a cultura americana o fez engolir em seus cinquenta anos de vida e decidiu que era hora de "vomitar" tudo isso e se desfazer de todo o lixo que havia acumulado. Mas para isso o autor usou de algumas ferramentas nada convencionais. A começar por seus desenhos toscos, que leva um tempo até entendermos o porquê de estarem ali no meio da narrativa. Vonnegut também evocou alguns personagens de outros de seus romances, o que fez muita gente acreditar que esse seria o livro de despedida da sua carreira de escritor (não foi!). Tudo isso, claro, acompanhado do humor ácido que já é característico do autor e que aqui está mais afiado do que nunca.


      "Café da Manhã dos Campeões" já começa com um baita spoiler. Sim, o autor já revela o desfecho da história nas primeiras páginas do livro e só depois vai nos contar os caminhos que levaram até ele. Pode parecer estranho, mas funciona. Ficamos instigados a descobrir o que levou os protagonistas Kilgore Trout e Dwayne Hoover a chegarem a tal ponto. Trout é um escritor de ficção científica meio maluco que compartilha suas ideias com um periquito chamado Bill e que tem seus contos publicados em revistas pornográficas das quais não recebe nenhum crédito e nem dinheiro algum. A mente de Trout é muito fértil e muitas das ideias para seus contos vêm das conversas mais banais. Pessimista nato, em suas histórias ele apresenta algumas de suas teorias mais malucas. Para se ter uma ideia da sua "maluquez", ele acredita que espelhos na verdade são vasos que servem como portais para outros universos. Trout é também um alter ego do próprio Vonnegut. Hoover, por outro lado, é um multi empresário de sucesso, um ricaço, dono de quase tudo na cidade fictícia de Midland. Mas apesar do dinheiro, Hoover está tão distante da felicidade quanto Trout. Viúvo, ele passa as noites conversando com seu cachorro Sparky. Hoover tem as "substâncias químicas erradas" no cérebro. Esse é o jeito do autor nos dizer que Hoover está ficando louco de pedra. Ele está por um triz de perder a conexão com a realidade e um livro escrito por Trout pode ser o estopim para que isso aconteça.

      Confesso que demorei um pouco para me conectar com essa história, o que me instigou a ir adiante foi justamente o spoiler do final que me deixou bem curioso. Apesar de já conhecer a escrita do autor, levou um tempo até eu começar a entender suas críticas disfarçadas de humor. Ácido até os ossos, o humor presente em "Café da Manhã" não possui filtros e pode até soar agressivo em um primeiro instante. Vonnegut não poupa o leitor de termos vulgares e palavrões. Os desenhos, toscos, seguem essa mesma pegada e são usados para explicar da forma mais ridícula as coisas mais banais. Tudo isso pode parecer apelativo, mas na verdade é aí que está escondida a genialidade do autor. Como você explicaria a cultura americana para quem nunca teve contato com ela? Ou melhor, como você a explicaria para um alienígena? É isso que Vonnegut faz aqui, sua narrativa é direcionada para alguém "de fora". Por isso ele recorre ao ridículo para explicar a cultura americana, porque ela assim é. "Café da Manhã dos Campeões" é uma grande sátira sobre política, guerra, sexo, racismo, materialismo e alienação. E apesar de ser direcionada a cultura americana dos anos 70, a obra não só permanece atual como passou também a englobar a cultura de outras sociedades, inclusive a nossa. De leitura rápida, esse é aquele tipo de livro que toca direto na ferida e coloca a sociedade nua diante de um espelho que irá revelar toda a sua imundice.

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