RESENHA: Gente Pobre - Fiódor Dostoiévski

       Em 1844, Fiódor Dostoiévski decidiu abandonar sua carreira militar para dedicar-se a literatura. Seu primeiro romance, "Gente Pobre", foi publicado em 1846 e o transformou, da noite para o dia, de um completo desconhecido, em um dos escritores mais promissores e comentados de sua época. A obra caiu nas graças de importantes figuras do meio literário russo, como o crítico Vissarion Bielínski, o poeta Nikolai Nekrássov e o escritor Dmitri Grigoróvitch. Dostoiévski era visto como um possível novo Gogól. "Gente Pobre" não seguia a cartilha da "escola natural" da literatura russa de sua época. Tida como o primeiro romance social, a obra deixava de lado o romantismo e trazia à tona os modos de vida, os preconceitos, as injustiças e os valores que permeavam a sociedade russa do século XIX, temas esses que viriam a se tornar marca registrada de toda a obra de Dostoiévski. Mas nem tudo eram flores. Assim como tudo que é diferente, "Gente Pobre" também foi alvo de duras críticas e causou rebuliço no meio literário. Além de ser acusado de não seguir a "escola natural" para compor o romance, Dostoiévski também foi criticado por "imperfeições" na sua escrita. A obra foi incompreendida por muitos, mas o tempo e as publicações posteriores trouxeram à luz toda a genialidade do autor. "Gente Pobre" deixou uma forte impressão e marcou início da trajetória que transformou Dostoiévski em um dos maiores romancistas e pensadores, não só de seu século, mas, da história. 

      Nesse romance epistolar, vamos acompanhar a troca de correspondências entre dois personagens. Makar Diévuchkin é um copista que trabalha numa repartição pública e mora de aluguel em um prédio decrépito onde a senhoria é mal-humorada e a vizinhança mexeriqueira. No prédio vizinho mora Varvara Alieksiêievna, uma jovem órfã que teve a sua vida marcada por inúmeras amarguras e não tem condições de se sustentar sozinha. Mas, apesar de todos os golpes que levaram da vida, os dois conseguiram conservar seu coração puro e bom. O infortúnio acabou por aproximá-los e, no auge de sua bondade, Makar decidiu tomar para si a responsabilidade de cuidar de Varvara. Mas essa não é uma história de amor, pelo menos não de amor entre homem e mulher. A relação que se desenvolve entre os dois personagens é mais como a de pai e filha. Para cumprir com a sua palavra, Makar se submete a duras privações, dívidas sem fim e humilhações de todo tipo. Varvara não fica muito atrás e, como se não bastasse todo o passado sofrido, também tem a sua cota de humilhações e ainda é alvo de conversa fiada da vizinhança. Como dois corpos que estão se afogando no mar tempestuoso que é a sociedade, Makar a Varvara tentam desesperadamente se salvar, se agarrando um ao outro.

      Como toda a narrativa de "Gente Pobre" se da através de cartas, o sofrimento de Makar e Varvara é palpável e se torna muito mais real. A cada carta lida, nos emocionamos, entristecemos, sofremos e vibramos junto com os personagens. Nos indignamos com as injustiças que lhes são impostas e com as zombarias das quais são alvos. Makar e Varvara tentam em suas respectivas cartas soar menos trágicos do que suas vidas realmente são, tentam não se tornar um peso para o outro, mas é difícil esconder a miséria e o sofrimento. Ao abrir mão de um narrador e adotar a roupagem de seus personagens, se colocando no lugar dessa gente pobre, Dostoiévski escancarou os esgotos da sociedade russa do século XIX. E como se isso não fosse o suficiente, o autor ainda trouxe para o romance uma discussão sobre o papel da literatura, assunto recorrente nas cartas trocadas entre Makar e Varvara, e que remetem a Púchkin e Gogól. Apesar de ser o seu romance de estreia, em "Gente Pobre" Dostoiévski não alivia e já apresenta aqui o seu cartão de visitas com todos os elementos que viriam a perpetuar a sua obra. Uma leitura intensa, tocante e reflexiva, que lança um olhar mais profundo para a alma e para a psicologia humana, assim como é toda leitura de Dostoiévski.

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