RESENHA: Memórias de um Caçador - Ivan Turguêniev

      Peça fundamental na abolição da servidão russa, a coletânea de contos "Memórias de um Caçador" foi publicada pela primeira vez 1852, em meio a um conturbado período político no qual a Rússia de Nicolau I, em contraposição à revolução francesa de 1848, assumia o papel de guardiã da contrarrevolução. Para driblar a censura, que começava a mostrar suas garras, Turguêniev teve que recorrer a um amigo censor moscovita para que sua obra fosse finalmente publicada. Apenas um mês depois a estratagema foi descoberta e Turguêniev condenado a prisão domiciliar. Mas o "estrago" já havia sido feito. "Memórias de um Caçador" já havia circulado o suficiente para incendiar o meio literário russo, denunciando os abusos cometidos pelos senhores de terras e desbravando o caminho para a humanização do camponês russo. Apesar de ter sido, posteriormente, tirada de circulação, a obra rapidamente ganhou o ocidente com traduções para diversas línguas, dentre elas o francês, o inglês e o alemão, o que fez de Turguêniev o primeiro dos grandes escritores russos a irromper na Europa. Na Rússia, o livro só voltou a circular livremente em 1859, sob o reinado de Alexandre II.

      Tendo em vista o seu importante papel social, supõe-se que "Memórias de um Caçador" seja uma obra densa e de forte cunho político, certo? Errado! O que temos aqui são 25 contos dos mais gostosos de se ler, nos quais vamos acompanhar os causos de um nobre caçador da região de Oriol em suas andanças pelos bosques russos (causos esses inspirados em acontecimentos autobiográficos). Com uma escrita poética e altamente imersiva, Turguêniev consegue nos transportar com maestria para os campos russos. Os elementos da natureza se fazem presentes com uma vivacidade e um colorido intensos, de saltar das páginas. O mujique, retratado pela primeira vez de forma humanizada na literatura russa, ganha vida e voz. Os costumes e as crenças populares da região dão o acabamento e ajudam a compor esse belo quadro do povo russo pintado pelo autor. Diferente de seus contemporâneos (e nas horas vagas, críticos) Tolstói e Dostoiévski, Turguêniev tece suas críticas de modo muito mais sutil. Sem abrir mão da estética, seus contos são verdadeiros gritos de "basta!" contra as injustiças impostas aos camponeses russos.

      Essa foi, de longe, uma das melhores experiências que já tive com contos e com a literatura russa em geral. Com uma escrita simples, bonita e envolvente, "Memórias de um Caçador" é uma bela porta de entrada para quem pretende começar a ler os russos. As descrições da natureza são de botar um sorriso no rosto do leitor para em seguida escancarar a dura realidade enfrentada pelo mujique russo e nos mergulhar em um estado de melancolia. Esse contraste, ao mesmo tempo em que é genial, é fundamental para que não esqueçamos que não estamos diante de simples histórias de caça. Bem mais que isso, pode-se até dizer que "Memórias de um Caçador" é uma crítica social disfarçada de poesia. 

Comentários