RESENHA: Um Cântico para Leibowitz - Walter M. Miller Jr.

      Publicado pela primeira vez em 1959, "Um Cântico para Leibowitz" é uma ficção-científica distópica na qual a humanidade, e a Terra como um todo, se viram a beira da extinção após um cataclismo nuclear. Não bastasse os horrores deixado pela guerra, a ciência e o conhecimento, apontados como os principais culpados, passaram então a ser perseguidos e a humanidade, tomada por loucura e violência, mergulhou em uma nova Idade das Trevas. Um verdadeiro holocausto contra o conhecimento foi instaurado, livros foram queimados, pessoas instruídas foram caçadas e o simples fato de ser alfabetizado se tornou motivo de perseguição. Sem ter mais aonde recorrer, os últimos resquícios da ciência encontraram refúgio nas igrejas, onde mais tarde, em uma delas, foi fundada a Ordem Albertina de São Leibowitz. Com o propósito de preservar a história e o conhecimento adquirido pela raça humana ao longo dos anos, os monges da Ordem dedicam suas vidas a tarefa de copiar e memorizar livros e documentos recuperados das ruínas da civilização, tecendo assim a Memorabilia, uma espécie de bíblia da memória humana. Mas até quando esse conhecimento deve permanecer trancado na abadia? Como saber se a humanidade já é madura o suficiente para receber de volta esse saber? Essas são algumas das questões que os monges e nós, leitores, faremos ao longo dessa leitura.

(Walter M. Miller Jr.)

      Para entender melhor o "Cântico" é preciso olhar para trás, não só para o contexto histórico da época de sua publicação mas também para a história de vida do autor. Após o ataque aéreo de Pearl Harbor, durante a Segunda Guerra Mundial, Walter M. Miller Jr. se alistou na Força Aérea Americana, onde teve participação em mais de cinquenta bombardeios sobre a Itália e os Bálcãs. Um desses ataques causou a destruição da abadia dos beneditinos de Monte Cassino, na Itália, o mais antigo mosteiro do mundo ocidental, datado do século VI. Tal episódio se revelou uma experiência traumática e um divisor de águas na vida do futuro escritor. Após a guerra, Miller tornou-se recluso e se converteu ao catolicismo. Começou a escrever contos nos anos 50, a maioria deles tendo como tema central a relação da humanidade com a tecnologia. "Um Cântico para Leibowitz" foi o seu único romance publicado. O autor, que sofria de um quadro de depressão, acabou cometendo suicídio, em 1996, quando começava a trabalhar em sua continuação, obra que veio a ser finalizada por um amigo anos mais tarde. Além de refletir as experiências pessoais do autor, o "Cântico" também remete aos medos e as aflições que assolavam a humanidade no período do pós-guerra e da Guerra Fria, quando a bomba atômica e a radioatividade ainda eram lembranças terrivelmente vívidas.

(Ruínas da Abadia de Monte Cassino após o ataque aéreo dos Aliados, em 1944)

      Vencedor do Prêmio Hugo de Melhor Romance, em 1961, "Um Cântico para Leibowitz" é uma obra atemporal que não só retrata muito bem o período em que foi escrita como também insiste em se manter atual. O culto da ignorância, o uso imprudente da tecnologia, a ganância, a sede de poder, a responsabilidade social, os dogmas religiosos, o livre-arbítrio, esses são alguns dos temas debatidos aqui e que traçam um triste paralelo com a nossa realidade. Bom livro pra quem gosta de uma leitura mais reflexiva. Não é uma leitura rápida, embora não seja difícil. Contém muitos trechos em latim e passagens bíblicas, o que exige um pouco de paciência do leitor. O glossário no final do livro não só auxilia como enriquece bastante a experiência de leitura nesse sentido. A maior parte da história se passa dentro da abadia, então não espere muita ação. A narrativa é dividida em três partes, cada uma delas cobrindo um período diferente da história, o que gera certa desorientação na passagem entre elas, mas isso é essencial para que possamos acompanhar todo o panorama dessa tentativa de reconstrução da civilização. Uma obra pra ser degustada aos poucos, sem pressa, com atenção especial aos detalhes e aquilo que está nas entrelinhas, pra ler se colocando no lugar dos monges e refletindo sobre esse mundo caótico que não está tão distante assim do nosso. Mais que um romance, o "Cântico" é um instigante estudo sobre a questão: "o que fazer com o saber?"

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