RESENHA: O Som do Rugido da Onça - Micheliny Verunschk

      Em 1817, os naturalistas Spix e Martius, da Baviera, desembarcaram no Rio de Janeiro em uma expedição que tinha como objetivo explorar a região interior do país e "realizar investigações científicas pelo bem da ciência e da humanidade." Três anos depois, os exploradores retornavam a Munique com o navio abarrotado de exemplares da fauna e da flora brasileira, além de duas crianças indígenas. Essas crianças morreram pouco tempo depois de chegar ao Velho Continente e, tendo suas histórias contadas e distorcidas por seus captores, acabaram resumidas a simples figuras nos livros de história. Neste, que é o seu quinto romance, a escritora e historiadora pernambucana Micheliny Verunschk, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2014, dá voz a essas crianças para desromantizar e recontar esse triste episódio do Brasil colonial sob a perspectiva dos vencidos e não dos vencedores, como estamos acostumados a ver.

      Aqui nós vamos acompanhar a triste jornada de Iñe-e e Juri, crianças de tribos rivais que são raptadas de sua terra natal e levadas para a Europa, como mera parte da fauna local, pelos naturalistas Martius e Spix. Como se não bastasse todas as privações a que são impostas durante a longa travessia, chegando lá, essas crianças são descaracterizadas, privadas de exercer suas crenças e costumes, batizadas e, finalmente, mortas. Mas a verdade é que Iñe-e e Juri morreram bem antes, embora não fisicamente, no instante em que foram arrancados de sua terra, vítimas de um estupro cultural e psicológico pelas mãos dos exploradores. Muita dor, lágrimas e lirismo, esses são os elementos que acompanham a gente durante essa leitura tão necessária. Com uma escrita poética, Micheliny nos envolve em um mundo que soa completamente desconhecido (embora não deveria), repleto de mitos, relatos, palavras e sabedorias de povos originários ligados ao Brasil. Elementos esses que causam estranhamento e mostram o quanto nós estamos distantes e desconectados da nossa própria cultura e muito mais familiarizados com a cultura europeia. Mas esse é bem mais que um romance histórico. É também uma obra política, um alerta e um grito de basta contra qualquer tipo de violência e abuso de poder. Micheliny traça um paralelo com o Brasil contemporâneo ao nos apresentar a personagem Josefa. Essa conexão nos permite perceber o quanto a violência imposta pelos europeus em terras brasileiras no século XIX ainda ecoa em nossa sociedade atual. Como diz a Grande Onça: "ruindade não acaba".

(Litografia da menina "Miranha", por Spix e Martius - Séc. XIX)

      Impossível colocar em palavras tudo que senti durante essa leitura. Dor, raiva, tristeza, compaixão... Uma torrente de sentimentos que em alguns momentos não encontrou escape e veio a transbordar em lágrimas. Só sei que, a partir de hoje, notícias que envolvam a violação de reservas indígenas, confrontos com madeireiros e garimpeiros, em suma, notícias que envolvam qualquer tipo de violência contra indígenas, ganharão um outro sentido e passarão a machucar bem mais. "O Som do Rugido da Onça" foi um tapa na cara muito mais que necessário e um empurrão para, assim como a personagem Josefa, sair da zona de conformidade.

(Litografia do menino "Iuri", por Spix e Martius - Séc. XIX)

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