RESENHA: Chuva Negra - Masuji Ibuse

"Hiroshima não mais existia.
Mesmo assim, quem imaginaria que seu fim seria tão trágico?"


      Nascido em Kamo, província de Hiroshima, em 1898, Masuji Ibuse começou a escrever ficção em 1922. Suas obras são marcadas por uma linguagem poética e, às vezes, humorística. Entre elas se destacam "A Carpa", "A Salamandra", "Crônicas das Pequenas Ondas", "O Hotel da Estação", "O Antiquário" e, aquela que é considerada a sua obra-prima, "Chuva Negra". Publicado pela primeira vez em 1965, o romance, vencedor do Prêmio Noma, um dos principais do meio literário japonês, retrata os efeitos físicos, psicológicos e sociais causados pela bomba atômica que atingiu Hiroshima, em 1945. Inspirado em diários e testemunhos de sobreviventes reais, "Chuva Negra" se tornou uma espécie de porta-voz para toda uma geração que carrega até hoje as cicatrizes do desastre. A obra se tornou um marco não só da literatura mas também do cinema japonês, quando ganhou, em 1989, uma aclamada adaptação pelas mãos do renomado cineasta Shohei Imamura. E essa foi a minha escolha para dar continuidade ao meu projeto pessoal de conhecer mais da literatura japonesa.

      No dia 6 de agosto de 1945 uma bomba atômica lançada pela Força Aérea dos EUA atingiu Hiroshima. Três dias depois, o alvo foi Nagasaki. Estima-se que os ataques causaram a morte de mais de 200 mil pessoas, entre aquelas que morreram instantaneamente e as que pereceram no próximos meses devido a complicações causadas pela radiação. Mas e quanto aos sobreviventes? Que marcas eles carregam? Aqui nós vamos acompanhar o drama do casal Shigematsu e Shigeko, que, anos após o fim da guerra, tenta casar sua sobrinha, Yasuko, mas vê seu plano ameaçado pelos boatos de que a garota estaria envenenada pela radioatividade. O preconceito em torno daqueles que sobreviveram ao ataque é nítido e, junto ao constante medo de ver a doença se manifestar, se torna uma carga extremamente pesada para aqueles que já vivenciaram horror suficiente.

      Enquanto se dedica aos preparativos para o casamento da sobrinha, Shigematsu decide transcrever seus diários do dia em que a bomba caiu e do inferno que se seguiu. Revisitar essas memórias é extremamente doloroso, não só para Shigematsu mas também para o leitor. Uma criança tentando se alimentar no seio de um cadáver. Uma mulher transportando o corpo de seu filho no metrô. Essas são apenas algumas das tristes cenas com as quais vamos nos deparar ao longo dessa leitura. Masuji Ibuse não alivia e nos coloca bem debaixo da nuvem em forma de cogumelo. Corpos espalhados pela rua. Rostos queimados, irreconhecíveis. Moscas e vermes se fartando. Não há comunicação, não há como saber se um parente está vivo ou morto. Incêndios em toda parte. Sem lugar para enterrar os mortos, cadáveres são cremados a céu aberto. O inferno na Terra. Aquelas pessoas não sabiam, mas estavam respirando ar venenoso e pisando em solo radioativo. Dores de cabeça, febre, queda de cabelo, hemorragias, esses eram os primeiros sintomas causados por um inimigo invisível e até então desconhecido.


"Nunca poderíamos imaginar existir no mundo uma bomba tão terrível,
da qual nunca ouvíramos falar nem havíamos visto."

      Nem preciso dizer o quanto essa leitura foi indigesta. O tema já é pesado por si e, com a melancolia e a frieza da literatura japonesa, ganhou ares ainda mais pesados. A narrativa em forma de diários dá o toque final e, apesar de deixar a leitura mais lenta, também a torna mais crua e verossímil, nos colocando na pele dos sobreviventes. Mas o que mais dói é saber que, apesar de ser uma obra de ficção, a "Chuva Negra" retrata a realidade por trás de um dos episódios mais nefastos da história da humanidade. Um livro pra ser lido aos poucos e com cuidado. Confesso que em alguns momentos me senti sufocado durante a leitura e me vi forçado a fazer algumas pausas. Essa não é uma leitura agradável, porém acontecimentos como esse não devem cair no esquecimento. É importante lembrar para que a história não se repita.


"No entanto, eu não deseja morrer ali, daquela doença.
Comecei a desejar morrer em um outro lugar, de uma enfermidade que eu compreendesse."

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