RESENHA: O Corcunda de Notre Dame - Victor Hugo

      Romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta e ativista pelos direitos humanos, Victor-Maire Hugo nasceu em 1802, na comuna francesa de Bensançon. Ainda jovem se dedicou a poesia e aos quinze anos foi premiado em um concurso de poesia da Academia Francesa. Em 1822, integrou-se ao romancismo e tornou-se um porta-voz do movimento. Suas convicções monarquistas e ultraconservadoras foram abaladas pela Revolução de 1830, que alterou profundamente sua percepção política. O segundo abalo veio com o Golpe de Estado dado por Napoleão III, em 1851, a quem Victor Hugo chegou a apoiar. Muito ativo politicamente, defensor da democracia liberal e humanitária, e então opositor de Napoleão III, teve que conviver com a censura e o exílio. O período em que passou exilado na ilha de Guernesey foi o mais prolífico de sua carreira literária, dele saíram obras como "Os Miseráveis" (1862) e "Os Trabalhadores do Mar" (1866). Após a queda do Império de Napoleão III, em 1870, Victor Hugo retornou a França, onde foi ovacionado, e retomou então sua carreira política. Mas os problemas estavam longe de acabar, conflitos causados pela Comuna Francesa geraram desgaste com o novo governo, o que acabou resultando em um novo exílio, dessa vez em Luxemburgo. Victor Hugo se recusava a fechar os olhos para as injustiças sociais que o cercavam e se manteve politicamente ativo até o fim de seus dias. Até mesmo em sua derradeira hora recusou honrarias, deixou sua herança para os mais necessitados e foi levado ao cemitério pelo carro mortuário dos indigentes, como era sua vontade.

      Mas onde se encaixa "O Corcunda de Notre Dame" nesse quebra-cabeça? Com apenas 28 anos, Victor Hugo já gozava de certo prestígio no meio literário francês. O autor de "Odes e Baladas" (1822), "Cromwell" (1827), "As Orientais" (1829), "O Último Dia de um Condenado à Morte" (1829) e "Hernani" (1830) tinha sua casa como ponto de encontro de artistas e não só exercia influência como já liderava um grupo de escritores. Chegou até a receber o título de Cavaleiro da Legião da Honra, mas isso não o deixou imune às pressões do seu editor, para quem Victor Hugo havia vendido um romance e precisava entregá-lo em um curto período de tempo. "Notre Dame de Paris, 1482" começou a ser escrito em 1830, mas foi interrompido pela revolução que aconteceu naquele mesmo ano. Correndo contra o relógio, o jovem Victor Hugo conseguiu retomar a escrita e concluir o romance, que foi publicado pela primeira vez em 1831. Mas foi na tradução inglesa que o "Corcunda" apareceu no título pela primeira vez, estratégia essa que se mostrou acertada e passaria então a ser adotada em todo o mundo em edições posteriores.

      Marco do romantismo francês, "O Corcunda de Notre Dame" é bem mais que história de amor não correspondido. Defensor assíduo dos monumentos históricos, Victor Hugo queria fazer do romance mais que uma simples homenagem a Catedral de Notre-Dame. Incorporando elementos góticos e históricos (por exemplo, com o próprio rei Luis XI assumindo o papel de personagem) o autor construiu aqui uma intensa trama com personagens inesquecíveis, na qual o passado é explorado de forma a se fundir com a ficção. Victor Hugo nos leva em uma viagem pela Paris da Idade Média, mais precisamente para o século XV, onde, na companhia de personagens memoráveis como o corcunda Quasímodo, arquidiácono Claude, poeta Gringoire, o capitão Phoebus, a reclusa Gudule, a cigana Esmeralda e sua cabra Djali, somos inseridos em meio a um microcosmo da sociedade francesa de outrora. Sendo um romance de Victor Hugo, claro, as críticas sociais marcam presença. Estamos falando de uma época em que não existia força policial, o poder estava nas mãos da Igreja, pessoas eram torturadas e enforcadas à luz do dia, a injustiça e o preconceito tomavam conta das ruas, horrores com os quais entramos em contato ao longo dessa leitura.

      Quem já leu Victor Hugo sabe, as digressões são intrínsecas a sua escrita e aqui não é diferente. As primeiras páginas do romance são quase que totalmente dedicadas à história e à arquitetura de Paris. O ideal é intercalar essa parte inicial com alguma outra leitura mais leve para não sofrer tanto. Porém, conforme a narrativa avança somos tragados pela trama e, quando nos damos conta, já não conseguimos mais largar o livro, envolvidos como uma mosca que tenta inutilmente se livrar das teias de uma aranha. Todas as digressões onde Victor Hugo debate a história, a arquitetura e a sociedade parisienses (algumas delas chegaram a ser suprimidas nas primeiras edições do romance) se mostram muito mais que meras divagações e compõem um importante pano de fundo que só enriquece a leitura. No final, assim como acontece em "Os Miseráveis", saímos com a sensação de ter visitado um importante capítulo da história da França e levando consigo personagens imortais à altura de Jean Valjean, Cosette, Fantine, Gavroche e Javert.

      "O Corcunda de Notre Dame" catapultou a carreira de Victor Hugo e se tornou um clássico não só da literatura francesa como também mundial. O romance transcendeu as páginas e ganhou adaptações no mundo do cinema, da ópera e do teatro, a mais famosa delas, talvez, a animação da Disney, de 1996. Se mais do que homenagear Victor Hugo queria chamar a atenção da sociedade para a preservação dos monumentos históricos, ele conseguiu. Apesar das críticas a época de sua publicação, o impacto do romance foi tamanho que influenciou a restauração da própria Catedral, que teve início em 1845, na qual o arquiteto Viollet-le-Duc se inspirou no romance de Victor Hugo para fazer seus desenhos. Um livro que, literalmente, cumpriu seu papel, mas que nem por isso deixa de dialogar com a sociedade e o tempo atuais.

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