RESENHA: O Mestre e Margarida - Mikhail Bulgákov

"Então se você me encontrar
Tenha bons modos
Mostre um pouco de simpatia e bom gosto
Use toda sua boa gentileza
Ou eu vou dar cabo de você"

                                                             Sympathy for the Devil - The Rolling Stones


      Mikhail Bulgákov foi um escritor e dramaturgo russo nascido em Kiev, na atual Ucrânia, em 1891. Formou-se em medicina e chegou a atuar como voluntário da Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial. Nos anos 20, trocou a medicina pela literatura e começou a escrever contos e novelas. Mas foi na dramaturgia que Bulgákov primeiro se tornou conhecido, adaptando obras para o palco do Teatro de Arte de Moscou. Enquanto sua arte florescia, o cerco a sua volta se fechava com a ascensão do governo stalinista. Sua carreira artística foi marcada pela implacável perseguição do regime soviético e a maioria de suas obras, tanto no teatro como na literatura, caíram nas garras da censura. Sem mais recursos e privado do direito de exercer sua profissão, Bulgákov chegou a escrever uma carta ao governo solicitando autorização para deixar o país, o que lhe foi negado. Impedido de deixar a Rússia, Bulgákov dedicou o resto de sua vida a escrever obras que, sabia ele, não poderiam ser publicadas naquele momento. Morreu em 1940, enquanto trabalhava, já com a saúde debilitada, em "O Mestre e Margarida", ditando os últimos capítulos do romance para sua esposa Ielena.

      "O Mestre e Margarida" levou doze anos para ser finalizado. Sua escrita foi interrompida e retomada diversas vezes: alguns manuscritos foram confiscados pelo governo e outros foram queimados pelo próprio autor. A obra só veio a ser publicada livre de censuras no Ocidente no fim dos anos 60 e na Rússia mais tarde ainda, em 1973 (incríveis 33 anos após a morte do autor!).

(Mikhail Bulgákov)

      Nascido em um lar extremamente musical (a mãe tocava piano e o pai, violino), Bulgákov desenvolveu um interesse natural pela música e reza a lenda que ele teria assistido a uma adaptação operística de Fausto (Goethe) mais de quarenta vezes. Essa teria sido sua principal inspiração para escrever o romance.

      Aqui nós vamos acompanhar a visita de um ilustre personagem à Moscou dos anos 30: o diabo, Mas ele não está sozinho, seu séquito é formado por um gato falante, um trapaceiro, um capanga disforme e uma beldade ruiva. Junto a uma miríade de personagens, a maioria deles do meio literário e teatral, temos, claro, o Mestre e a Margarida. Ele, um escritor frustrado, ela, a amante disposta a fazer de tudo em nome do amor. Difícil falar mais dessa trama sem entregar demais, pois esse é aquele tipo de livro que quanto menos você souber a respeito, mais impactante e divertida será a leitura. Sim, divertida! Ao contrário de outros clássicos russos, o romance tem uma narrativa extremamente fluida (às vezes vertiginosa, mudando a perspectiva em que a história é contada, mas nunca confusa) e engraçada. O diabo aqui não é exatamente aquela figura perversa retratada na bíblia, é muito mais um espectador que apenas gosta de ver o circo pegar fogo (fogo esse, na maioria das vezes, ateado pelos próprios humanos). Ele e sua trupe pregam suas peças, e não são poucas, mas não há perversidade.

(The Rolling Stones tocando Sympathy for the Devil, canção inspirada no romance)

      O livro, claro, é uma sátira do governo soviético, mas vai além e apresenta muitas outras camadas. Temos aqui elementos autobiográficos (o próprio personagem do Mestre traz consigo muito de Bulgákov), um rico fundo literário (com referências a Goethe, Gógol, Tolstói, Dostoiévski e outros), a música também se faz muito presente (com referências a diversos compositores, entre eles Johann Strauss) e, claro, as referências bíblicas, que vão muito além da figura do diabo. Tudo isso faz de "O Mestre e Margarida" o casamento perfeito entre uma leitura rica e divertida, não desprovida de profundas reflexões. Se por um lado o romance presta muitas homenagens, por outro ele também empresta inspiração. A obra ganhou inúmeras adaptações para o mundo do teatro, do cinema, da ópera e da música, e hoje já faz parte da cultura pop.

      A título de curiosidade, o apartamento onde morou Bulgákov (e que também é um dos cenários do romance) se tornou um museu. O local já foi vandalizado por fanáticos religiosos que acusavam o autor e seu romance de satanismo. O que, ironicamente, cai como uma luva para uma das mensagens que o livro deixa: o diabo, muitas vezes, está nos olhos de quem vê.

(Fachada do Museu Bulgákov, em Moscou)

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