RESENHA: O Duplo - Fiódor Dostoiévski


      Após abandonar a carreira militar para se dedicar a literatura, Dostoiévski viu seu romance de estreia, "Gente Pobre", cair nas graças da crítica. Publicado um pouco mais tarde naquele mesmo ano de 1846, "O Duplo" teve uma recepção bem diferente de seu antecessor. Incompreendida, a obra foi tida como uma grande decepção por aqueles que viam em Dostoiévski a possiblidade de um novo Gógol. Olhando em retrospecto, é possível entender o estranhamento que o romance causou. "O Duplo" marca o primeiro mergulho de Dostoiévski no psiquismo humano, elemento que se tornaria recorrente em seus escritos e que seria explorado mais a fundo em obras como "Crime e Castigo", "O Idiota" e "Os Irmãos Karamázov". Não que a psique humana não tivesse sido explorada na literatura russa até então, autores como Pushkin e Gógol já haviam tratado do tema, mas não da forma como Dostoiévski o fez. Mais que um simples curioso, Dostoiévski realmente buscava conhecimento sobre o campo da psicologia, talvez pelo fato de sofrer de epilepsia (há controvérsias quanto a isso). O fato é que o psiquismo era muito mais que simples interesse para Dostoiévski e "O Duplo" foi a sua primeira expedição às cavernas da mente humana.


      Aqui nós vamos acompanhar o drama do pequeno funcionário público que almeja aceitação na alta sociedade. Golyádkin é diagnosticado com solidão e o médico lhe prescreve: convívio social e "não ser inimigo da garrafa." Mas o protagonista se vê emaranhado por uma teia de amarras morais e sociais, perdido em um labirinto burocrático sem fim numa Petersburgo cinzenta. Após um episódio traumático que desencadeia numa crise, Golyádkin se vê face a face com seu duplo. Seria sonho? Loucura? Uma peça pregada pelos colegas de trabalho? Golyádkin então passa a conviver com seu duplo, o que rende até alguns momentos de humor, mas aos poucos o recém chegado vai se revelando um verdadeiro tormento para o original.

      Construídos com maestria, os diálogos roubam a cena em "O Duplo". Não só as conversas entre Golyádkin e seu duplo são excepcionais, como também as conversas que o protagonista tem com seu médico, seus colegas de trabalho e seus superiores, e até mesmo seus longos monólogos, tudo parece um intrincado jogo de xadrez psicológico no qual Dostoiévski vai movendo as peças até chegar ao xeque-mate: um trágico desfecho propenso a mergulhar o leitor em um estado de melancolia.


      Mas seria essa uma leitura complexa? Não! Apesar de todo o labirinto psicológico envolvido, "O Duplo" é um romance extremamente fluido (talvez o Dostoiévski mais fluido que já li). Com pouco mais de duzentas páginas e de rápida leitura, acredito que esta seja a porta de entrada ideal para aqueles que pretendem embarcar na obra dostoievskiana. Sem contar que a identificação com o protagonista acontece de forma muito natural, afinal, quem nunca de sentiu deslocado no meio social em algum momento? Sabe aquela sensação de não se encaixar? Quantos de nós somos duplos sem perceber? Quantas vezes criamos uma outra versão de nós mesmos para cumprir as conveniências sociais e acabamos nos perdendo dentro dela, presos em nossos próprios papéis? Questões como essas surgirão ao longo da narrativa. Se prepare pra ser incomodado, essa não é uma leitura agradável.


      Quanto a edição da 34, falar sobre é chover no molhado, né? Com tradução e posfácio de Paulo Bezerra e ilustrações do expressionista austríaco Alfred Kubin (que dialogam muito bem com a obra), a edição entrega tudo para que o leitor tenha a melhor e mais completa experiência de leitura. Aquele cuidado especial que todo romance dostoievskiano merece.

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