RESENHA: Meninas - Liudmila Ulítskaia

      Liudmila Ulítskaia nasceu na União Soviética em 1943, bem em meio a Segunda Guerra Mundial, na região dos Montes Urais, para onde sua família havia sido evacuada. Se formou em biologia com especialização em genética e exerceu a profissão por dois anos no Instituto Nikolai Vavílov, em Moscou, mas foi afastada do cargo sob a acusação de emprestar sua máquina de escrever a um autor "clandestino", isto é, que não tinha autorização para publicar. Forçada a abandonar sua carreira, se dedicou então à escrita e se envolveu com o teatro, o rádio e o cinema. Depois de anos escrevendo sem poder publicar, seu primeiro livro finalmente saiu da gaveta, na França, em 1993. A autora, que publicou o seu primeiro livro aos 50 anos, é hoje um dos maiores nomes da literatura russa contemporânea. Ainda em atividade, Ulítskaia é ativista política e cultural, vencedora do "Prix Simone de Beauvoir pour la Liberté des Femmes", em 2011, e a primeira mulher a integrar a coleção Leste, da Editora 34.

      Primeira obra de Ulítskaia publicada no Brasil, "Meninas" traz seis contos que colocam frente a frente grandes eventos históricos e o cotidiano de meninas comuns vivendo na União Soviética. Em "A Dádiva Prodigiosa", vamos acompanhar um grupo de pioneiras que sai em sua primeira "missão" após assistir uma cerimônia em homenagem a Stálin. "Filhas de Outro" nos coloca em meio a Segunda Guerra Mundial. Mas não no front, com o marido, e sim com a esposa grávida, no lar. Aqui o som das metralhadoras é trocado pelo choro das gêmeas que nasceram longe do pai. "A Enjeitada" nos apresenta uma complexa relação entre irmãs em uma sociedade infestada de injustiças e preconceitos. Em "No Dia 2 de Março Daquele Mesmo Ano" vamos conhecer Lília, uma menina de origem judia que sofre perseguição na escola. Aqui, a morte de Stálin não tem mais importância que o drama de uma menina que está se tornando mulher, ela não entende seu corpo e não entende o mundo ao seu redor. Uma inocente brincadeira de boneca termina na primeira experiência sexual de um grupo de meninas em "Catapora". Por fim, temos "A Pobre, Feliz Kolivânova", que trata do amor platônico que uma aluna nutre por sua professora.

(Liudmila Ulítskaia)

      São histórias breves, sensíveis e comoventes, que têm em comum o pano de fundo opressor do regime soviético contrastado com a inocência dessas crianças. Ao longo da leitura vamos "rever" algumas das meninas em diferentes momentos de sua vida, ora antes da morte de Stálin, ora depois. O ciclo forma um intricado quebra-cabeça da vida cotidiana na União Soviética, que vai sendo construído conto a conto, peça a peça. Com uma prosa gostosa e que remete a "histórias de vó", Ulítskaia constrói uma poderosa narrativa repleta de traços autobiográficos e de uma sensibilidade que só as mulheres possuem. O tema da infância, tão comum em obras de autores como Tolstói e Dostoiévski, surge aqui sob uma nova perspectiva, feminina, e a autora não desvia dos tabus para explorá-lo. As meninas de Ulítskaia são fortes, intensas e inesquecíveis. Concluída a leitura, fica fácil entender porque a autora vem sendo recorrentemente cotada para o Nobel de Literatura. A edição da 34 conta com tradução de Irineu Franco Perpetuo e posfácio de Danilo Hora, o que deixa a experiência de leitura ainda mais completa.

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