RESENHA: O Fim do Homem Soviético - Svetlana Aleksiévitch

"Não há tarefa mais incessante para o homem do que, tendo se tornado livre,
encontrar depressa alguém diante de quem possa curvar-se." - Dostoiévski


      Jornalista e escritora, Svetlana Aleksiévitch nasceu na Ucrânia, em 1948. Publicou livros que não só ajudam a contar a história da Rússia como também dão vozes e rostos a grandes eventos históricos, como a Segunda Guerra Mundial ("A Guerra Não Tem Rosto de Mulher") e o desastre de Chernobyl ("Vozes de Tchernóbil"). Em 2015, foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura "pelos seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo". Publicado originalmente em 2013, "O Fim do Homem Soviético" reúne material de entrevistas realizadas pela autora entre os anos de 1991 e 2012. Esses relatos compõem um complexo quadro político, social e psicológico da Rússia pós-soviética. Geralmente, quando se trata da Alemanha de Hilter, da Itália de Mussolini ou da URSS de Stálin, fala-se muito de seu início, meio e fim, mas nem tanto sobre o pós. E é justamente esse período que Svetlana explora em seu livro.

      Aqui nós vamos acompanhar de perto a incapacidade de adaptação que o chamado homo sovieticus (produto do regime comunista) mostrou, e ainda mostra, diante da queda do Império soviético e da abertura política e econômica empreendida pelo governo de Gorbatchóv. Os impactos da mudança do sistema comunista para o capitalista foram muito além do campo econômico. De repente, aquele povo extremamente bélico e patriótico, vencedor de uma guerra e que estava acostumado a lutar e a viver (ou até mesmo morrer) por um grande ideal, se viu órfão de seu deus: o Estado soviético. A nação que até então era uma só se viu dividida entre russos, armênios, azerbaijanos, ucranianos, georgianos, tadjiques e tchetchenos. De um lado, os jovens otimistas que viam no horizonte a possibilidade de viver em um mundo mais democrático. De outro, aqueles que viam com horror a queda de uma ideologia pela qual entregaram suas vidas e não suportavam a ideia de ver sua fortaleza ruindo. Para esses, estrangeiros em seu próprio país, nem mesmo os horrores do governo stalinista, como a fome e os campos de trabalho forçado, foram suficientes para manchar seu passado glorioso. Incapazes de seguir adiante, essas pessoas estão presas ao passado.

(Svetlana Aleksiévitch)

      Como já é habitual nos livros da Svetlana, os relatos aqui são duros e comoventes. Vamos conhecer a história de uma mulher que se casou com um partisan, assassino de seu próprio marido. Outra que largou a família para se casar com um condenado à prisão perpétua. A netinha que teve que dividir o apartamento com o cadáver da avó, pois a família não tinha dinheiro para o enterro. O filho de um comandante da aeronáutica que cresceu ouvindo músicas marciais e lendo livros do governo soviético para alimentar o sonho pai, que era vê-lo ir pra guerra um dia. Uma ex-funcionária do Partido Comunista que coleciona carteirinhas abandonadas por ex-filiados. Uma mãe que perdeu a casa e teve que ir morar na rua com a filha. Outra que nem essa oportunidade teve, pois perdeu a filha em um atentado.

      O que torna a leitura ainda mais impactante é que, apesar de se tratar de um episódio da história russa, ela se encaixa muito bem em outros contextos (inclusive, é possível traçar alguns paralelos com o Brasil atual). Afinal, o que está em debate aqui é o ser humano e sua incapacidade de exercer sua liberdade ou, melhor dizendo, sua necessidade de se curvar diante de algo. "O Fim do Homem Soviético" é, sem dúvida, um dos livros de não-ficção mais marcantes que já li. Que traz ensinamentos, faz pensar e nos permite entender um pouco melhor como uma ideologia é capaz de entranhar-se na mente e no espírito humanos.

Comentários