RESENHA: Almas Mortas - Nikolai Gógol


          Nascido em Sorotchíntsi, na atual Ucrânia, em 1809, Nikolai Gógol foi, ao lado de nomes como Dostoiévski, Tolstói e Turguêniev, um dos maiores escritores do Império Russo. Aos vinte anos, mudou-se para Petersburgo e começou a publicar seus poemas. Ainda na capital, frequentou a Academia de Belas-Artes e chegou a lecionar História na Universidade de São Petersburgo. Deixou o cargo para se dedicar à carreira de escritor e, em 1835, publicou duas coletâneas de contos que já davam mostras de elementos que permeariam toda sua obra, como os temas folclóricos, o cenário rural e o olhar para as camadas mais inferiores da sociedade. Mais tarde, vieram trabalhos memoráveis que ajudaram a moldar toda a literatura russa, como os contos "O Nariz" e "O Capote", e a comédia "O Inspetor Geral", clássico do teatro russo que chegou a ser encenado aqui no Brasil. Marcadas pelo sarcasmo, suas obras exerceram grande influência nos meios literários, até mesmo Dostoiévski bebeu dessa fonte, e causaram rebuliço na crítica e na sociedade russas. Infelizmente, é triste o fim de Gógol. E "Almas Mortas", seu mais ambicioso projeto, não pôde ser concluído.

          Em 1836, Gógol partiu em uma viagem para o exterior e, radicado em Roma, começou a escrever seu "poema" (como o autor insistia em chamá-lo). A ideia inicial de "Almas Mortas" supostamente surgiu de uma anedota sugerida por ninguém menos que Púchkin, o maior poeta russo. Assim como Dante e sua "Divina Comédia", Gógol pretendia escrever um romance em três partes. A primeira delas foi publicada em 1842 e o restante, infelizmente, nunca veio ao mundo. Os últimos anos de Gógol, marcados por graves crises de depressão e surtos de ascetismo religioso, foram conturbados e melancólicos. Depois de cinco anos trabalhando na segunda parte do poema, o autor simplesmente queimou o manuscrito com a intenção de purificá-lo. Em 1847, já com a saúde debilitada, publicou o polêmico "Trechos Selecionados da Correspondência com Amigos", onde demostrou uma visão de mundo completamente retrógada e desconexa da realidade russa, o que lhe rendeu o endereçamento de uma carta nada agradável do crítico Bielínski. Em 1848, Gógol ainda tentou retomar a escrita da segunda parte de "Almas Mortas", mas, mais uma vez, condenou o manuscrito ao fogo. Recusando-se a se alimentar, faleceu por inanição em 1952, na cidade de Moscou.

(Nikolai Gógol)

          O projeto como um todo pode ter ficado incompleto, mas apenas a primeira parte de "Almas Mortas" foi o suficiente para que este se tornasse o primeiro dos cânones do romance russo. O livro narra as aventuras de Tchítchikov, um viajante que percorre o interior da Rússia acompanhado de sua trupe: um cocheiro bêbado, um servo que não gosta de banho e uma troica de cavalos teimosos; com o objetivo de comprar almas mortas, ou seja, servos que já morreram mas que ainda constam como vivos no último censo realizado pelo governo. Ao visitar as propriedades rurais, nosso protagonista tenta cair nas graças dos senhores de terras e para cada um deles adota diferentes estratégias para conseguir aquilo que tanto almeja. Os personagens são extremamente caricatos e, juntos à narrativa sarcástica, convidam ao riso. Porém, conforme a narrativa avança, Gógol nos leva do riso à melancolia. Após fazer a leitura do romance, Púchkin afirmou: "Como é triste a nossa Rússia". Não é difícil entendê-lo quando começamos a perceber o triste desenho que Gógol traça da Rússia tzarista de Nicolau I, com todos os seus vícios, suas burocracias, sua corrupção e suas injustiças, onde os nobres tinham total poder sobre os servos e esses, por sua vez, eram tratados como mera mercadoria.

          Ao longo da narrativa, Gógol lança mão de longas digressões. Não é uma leitura difícil, mas vertiginosa. Ora um diálogo entre os personagens, ora uma anedota, ora um convite para a meditar sobre o espírito russo ou sobre a natureza. É um formato nada convencional, principalmente para a sua época. Talvez por isso Gógol, que tinha uma escrita muito peculiar, insistia em chamá-lo de poema e não de romance. O mistério que gira em torno do viajante que compra mortos intriga e é um dos fios condutores da história, embora talvez nem seja o mais importante. Esse é aquele tipo de livro em que os meios sobressaem aos fins. Tudo está na trajetória de Tchítchikov e não em seu desfecho. Mesclando riso, melancolia e ácidas críticas sociais, Gógol conseguiu sintetizar aqui o espírito de uma época e de um país que buscava por identidade. Peça fundamental da literatura russa, "Almas Mortas" é uma leitura indispensável para aqueles que almejam compreender melhor a enigmática Rússia do século XIX.


          A edição da Editora 34 conta com tradução e notas de Rubens Figueiredo e traz diversos textos complementares, a saber: quatro cartas de Nikolai Gógol publicadas em 1847 (nas quais o autor comenta seu processo criativo, rebate críticas e revela o motivo que o levou a queimar seus manuscritos), os rascunhos que sobreviveram da segunda parte do romance (são capítulos inacabados que pouco acrescentam na experiência de leitura, mas que nos permite vislumbrar como funcionava o processo de redação do autor) e, por fim, um rico ensaio de Donald Fanger, professor emérito da Universidade de Harvard (mais de trinta páginas de uma análise aprofundada sobre a obra gogoliana).

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