RESENHA: Memórias do Subsolo - Fiódor Dostoiévski


          De volta do exílio em 1859, a vida não sorria para Dostoiévski. A situação financeira de sua família era delicada e ele começava a sentir as agruras da epilepsia. Viu o regime czarista fechar a revista que havia fundado com o irmão Mikhail e, mais tarde, teve que lidar com a morte desse mesmo irmão e de sua primeira esposa. E foi em meio a todo esse caos que concebeu uma das obras mais influentes de todo século XIX e que marcaria, até então, o seu mais profundo mergulho no psiquismo: "Memórias do Subsolo". Obra essa que ecoaria em Freud, Nietzsche, Kafka, Camus, Beckett e outros grandes pensadores.

          Publicado originalmente em 1864, o livro narra os tormentos do "homem do subsolo". Um personagem paradoxal que se vê acometido de um agudo conflito interno. Dividida em duas partes, a obra abre com um extenso monólogo, no qual esse complexo e contraditório personagem dirige-se diretamente ao leitor: "Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável". Logo fica evidente que estamos diante de uma mente atormentada. Amargo e recluso, nosso protagonista encarna os conflitos que assolavam a alma do homem russo em meio ao debate (muito em voga na época) sobre o ocidentalização da Rússia, bem como os conflitos internos do próprio autor.

          Em oposição ao pensamento racionalista e positivista encabeçado por Tchernichévski e Fourier (ambos são diretamente atacados e satirizados ao longo da novela), Dostoiévski não acreditava em "palácios de cristal" ou numa sociedade baseada no "belo e no sublime" vivendo em perfeita harmonia. Para ele, essas coisas não passavam de utopias que, mesmo se alcançadas, teriam um custo muito alto: a nossa humanidade. A certa altura, em uma célebre frase da novela, nosso protagonista questiona: "O que é melhor, uma felicidade barata ou um sofrimento elevado?" Dostoiévski deixa claro que há atalhos para uma falsa felicidade. Mas, para aqueles que buscam algo mais, para aqueles que questionam "o que estamos fazendo aqui?" e "qual o sentido da vida?", para esses o caminho é árduo. Perseguir uma utopia ou um sonho que nem mesmo é nosso, ou até mesmo se alienar, é muito mais cômodo do que ter uma consciência e uma postura questionadoras diante da vida. É assim que o nosso protagonista chega a triste constatação: "uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a consciência humana comum".


          Já na segunda parte da novela, vamos ver como o "homem do subsolo" se comporta em sociedade. Aqui ele demonstra todo o seu sentimento de inadequação e deslocamento ao se ver envolto em situações que para outros podem ser vistas como corriqueiras: o trabalho monótono em uma repartição, uma reunião de amigos, uma ida ao bar, um flerte... A "mente hipertrofiada" do nosso protagonista faz com que ele veja todas as coisas por um outro prisma. Sempre em conflito, ele constantemente entra em contradição e acaba se perdendo em seu próprio paradoxo. Adentrar sua caverna mental da forma como o livro nos permite é uma experiência estranha, perturbadora e obscura, mas completamente humana. Por mais que ele seja grosseiro e soe confuso em alguns momentos, é impossível sentir asco pelo mesmo. Muito pelo contrário, acabamos nos afeiçoando a ele, pois, de certa forma, suas angústias, dúvidas e imperfeições o tornam mais humano e o aproximam de nós. Afinal, todos nós temos os nossos subsolos aqui dentro.

          Com pouco mais de cem páginas (não se deixe enganar pelo tamanho), esse é um livro denso. Dostoiévski dotou a obra de várias camadas, sejam elas filosóficas, psíquicas ou sociais. Temas como livre-arbítrio, o sentido da vida e o amor são trazidos à tona e analisados minuciosamente. O contexto social e política russo está ali, mas é quase que completamente suprimido pelo tema mais abrangente do sofrimento da alma humana. Essa foi a obra que colocou definitivamente a filosofia no mapa da literatura. Não que tenha sido exatamente a primeira, mas foi a que definiu a melhor forma de fazê-lo em prosa (e talvez nenhum outro escritor tenho alcançado o mesmo êxito, com exceção do próprio Dostoiévski em seus romances de maturidade, anos mais tarde). "Memórias do Subsolo" é um marco zero não só da bibliografia do autor, mas também da literatura como um todo. É, como alguns apontam, um divisor de águas entre a literatura pré e pós-Dostoiévski, tamanha a sua importância e influência através dos séculos. Uma leitura que, ainda hoje, é capaz de causar tremores no subsolo de qualquer leitor.

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