RESENHA: Os Trabalhadores do Mar - Victor Hugo


          Concebido no período em que Victor Hugo se encontrava exilado na ilha de Guernsey, devido a sua oposição a Napoleão III, "Os Trabalhadores do Mar" marca o terceiro capítulo na chamada "luta do homem". Hugo defendia a ideia de que a religião, a sociedade e a natureza configuravam as três grandes forças opressoras do ser humano. Sendo a primeira delas ricamente explorada em "O Corcunda de Notre-Dame" (1831) e a segunda profundamente analisada em "Os Miseráveis" (1862), faltava então um romance com foco no conflito homem e natureza. Surgia então "Os Trabalhadores do Mar".

          Publicado originalmente na Bélgica, em 1866, o romance narra, com ares épicos, o drama de Gilliatt. À margem da sociedade, dado a solidão e a uma silenciosa contemplação da natureza, nosso herói se lança ao mar incumbido da mais colossal e irracional tarefa: resgatar, sozinho, um navio naufragado. O prêmio? A mão da mulher amada, Déruchette. A cada onda, a cada tempestade, a cada rajada de vento as forças de Gilliatt são testadas. Privado de abrigo, com provisões insuficientes e sem as ferramentas adequadas, nosso herói trava uma árdua batalha contra os elementos da natureza. Mas essa está longe de ser a sua única rival... Nessa odisseia de um homem só, um inimigo muito mais cruel, vil e impiedoso aguarda a espreita, seu nome é destino.

          Apesar de ter como fio condutor o conflito homem e natureza, a obra não se atém a isso. Ambientado no conturbado período de Restauração, o romance também debate temas políticos, sociais e até mesmo religiosos. As famosas digressões de Hugo, embora mais enxutas aqui, marcam presença e o autor não se intimida em dedicar longas passagens, por exemplo, a vida marítima. Temas como a solidão e o sentimento de não pertencimento perante a sociedade também ganham destaque. O mar é propenso a nos mergulhar em um estado reflexivo, por vezes melancólico, e o mesmo acontece com o romance de Hugo. O drama de Gilliatt não só compadece como nos faz olhar para a própria vida em busca de respostas. Enquanto assistimos, em Gilliatt, a diminuição do homem físico em prol do engrandecimento do homem moral, comtemplamos a nossa insignificância perante a infinitude do universo.

          Esse é um daqueles livros que transmitem aquela gostosa sensação de isolamento, indicado para leitores que, assim como eu, gostam de uma leitura mais contemplativa. Não é uma obra dotada de grandes reviravoltas ou ação, e nem de um grande arsenal de personagens, como costumam ser algumas obras de Hugo. Muito pelo contrário, aqui a maior parte da história se passa em uma rocha, tendo como único personagem Gilliatt e como cenário o vasto azul do mar. É o ser humano nu, sozinho e isolado, privado de tudo aquilo que o "intoxica" e posto em um microscópio para a minuciosa análise de sua alma.


          A recém lançada edição da UNESP, parte da coleção Clássicos da Literatura, conta com nova tradução e notas de Jorge Coli. A tradução até então disponível era a de Machado de Assis, que trazia os problemas característicos de sua época, onde as traduções eram feitas às pressas para a publicação em folhetim. O novo trabalho, bem mais atento e fiel ao estilo do original, está primoroso e chega para reparar o fato de até então não termos uma tradução mais cuidadosa dessa magnífica obra por aqui. As notas complementam bem a experiência de leitura, dando luz a passagens que estão em outras línguas e aos temidos termos náuticos. Enfim, uma edição definitiva que não só faz jus a obra como a revigora, de certa forma.

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