RESENHA: Anna Kariênina - Liev Tolstói


          Tolstói já era um escritor consagrado quando, em 1873, iniciou os escritos de "Anna Kariênina". Publicado em fascículos, o romance só foi finalizado em 1877 e surpreendeu aqueles que acreditavam que o Conde já havia atingido o topo com "Guerra e Paz" (1869). Peça fundamental do realismo, a obra, aclamada por escritores como Thomas Mann, Nabokov, Turguêniev e Maupassant, é tida por muitos como simplesmente o maior romance já escrito. Na trama, iremos acompanhar dois núcleos familiares aristocráticos da Rússia tzarista, centrados nas personagens de Anna e Liévin. Uma saga marcada por bailes de gala, corridas de cavalo, caçadas nos bosques e também casamentos infelizes, corações partidos, ciúmes, culpa e traições.

          O romance marca o mais profundo mergulho de Tolstói na psicologia humana e debate temas como conflitos internos, a insatisfação consigo mesmo, a falsidade das relações, patriarcado, maternidade, os segredos do coração e da alma (principalmente femininos). Temas universais como o amor, a morte, a passagem do tempo, a arte, a filosofia e a religião também surgem ao longo da narrativa. E o Conde, é claro, não deixa de fora assuntos que fervilhavam naquele momento em seu país, como o ocidentalismo da Rússia, o avanço da indústria sobre a agricultura, a situação dos mujiques, os direitos da mulher naquela sociedade, a inércia da nobreza, a guerra da Sérvia e muitos tabus que assolavam a Rússia do século XIX.


          Os personagens aqui são marcantes e não ficam relegados ao mero papel de personificações de ideias, nem mesmo se encaixam aos arquétipos de vilão e de mocinho. Complexos e bem trabalhados psicologicamente, volúveis ao meio mas com fortes motivações, são extremamente humanos. Liévin é uma espécie de alter ego do próprio autor e encarna muito dos conflitos que desembocariam no chamado despertar espiritual pelo qual Tolstói passaria logo após a conclusão do romance. Em suas páginas finais, a obra já deixa entrever os princípios do que viria a ser o tolstoismo.

          A narrativa também chama a atenção. Com a maior parte se dando através de diálogos e dentro da cabeça dos personagens, o romance é de uma fluidez assustadora e, para muitos, o precursor do fluxo de consciência. Esse também é um livro marcado por contrastes e ao longo da narrativa vamos perceber diversos deles se colocando frente a frente (por exemplo: alma feminina x alma masculina, homem do campo x homem da cidade), mas talvez os principais conflitos sejam razão x emoção e indivíduo x sociedade.


          A edição da Companhia das Letras conta com tradução e apresentação de Rubens Figueiredo, posfácio de Janet Malcolm e também uma árvore genealógica para que você não se perca em meio a gigantesca galeria de personagens que o livro traz. Mas não deixe se intimidar pelo volume! Apesar de toda profundidade, a leitura é muito fluida. Tem muito daqueles novelões à la Dickens, repleto de subtramas e ganchos no desfecho dos capítulos, mas não é nada rocambolesco. O resultado é um livro gostoso de ler, mas denso em conteúdo, daqueles que concluímos a leitura mas ela permanece ecoando em nós por um longo tempo.

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