RESENHA: Vida e Destino - Vassili Grossman


          O livro que teve que esperar quase trinta anos para ser publicado. Finalizado em 1960, "Vida e Destino" teve seus manuscritos confiscados pela KGB e percorreu um longo e tortuoso caminho até que pudesse ser finalmente publicado sem cortes, em 1989, na Rússia. Infelizmente, seu autor não sobreviveu para ver a publicação da obra. Tido como o "Guerra e Paz do século XX", o romance narra os desdobramentos acerca da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente dos avanços das tropas nazistas em terras soviéticas e a batalha de Stalingrado, e as consequências que isso acarretou para a população russa. A obra também denuncia os abusos cometidos pelo regime stalinista, como o massacre de 1937 e a coletivização, reafirmando a ideia de que os governos totalitários enfim não são tão diferentes entre si. Além de trazer personagens históricos, como Hitler e Stálin, muitas das passagens do livro são inspiradas na biografia do próprio autor, que atuou no front como correspondente do Exército Vermelho e perdeu a mãe judia nas mãos dos nazistas. Tudo isso faz de "Vida e Destino" mais que um romance, um documento, um testemunho, pois sabemos que há muito pouco de ficção em suas páginas.

          A narrativa gira em torno dos Chápochnikov, um drama familiar que se desmembra em vários círculos: um prisioneiro no campo de concentração alemão, outro no campo de trabalhos russo, uma mãe à espera de notícias do filho que foi para o front, um físico assombrado pelo Partido, uma mulher com o coração dividido entre um soldado e um prisioneiro, passageiros em um vagão a caminho da câmara de gás, soldados combatendo tropas nazistas em Stalingrado, o comandante de um corpo de tanques que sofre longe da mulher amada e uma jovem grávida que suspira por seu piloto da Força Aérea, dramas que sublinham o absurdo da guerra e a asfixia imposta pelo regime soviético. A narrativa é crua e sem filtros, e reserva momentos pra lá de perturbadores, como a visita de Eichmann as câmaras de gás (e, mais tarde, o sufocamento pelos olhos de uma criança), as torturas e os experimentos de privação de sono impostos aos prisioneiros da prisão russa de Lubianka e a agonia dos alemães cercados em Stalingrado, sem munição e sem a autorização de Hitler para recuar, recorrendo ao consumo de carne de cavalo para sobreviver. A guerra como ela é... E os regimes totalitários como eles são.

          É o que sempre digo: não há horror ficcional que chegue perto do ser humano quando esse resolve mostrar o seu lado mais hediondo. "Vida e Destino" evidencia bem isso. Praticamente todos os capítulos do livro são sombrios, há muito pouco espaço para o leitor "respirar". Ora estamos em meio aos horrores dos campos de concentração, ora somos jogados no olho do furacão da guerra, ou então estamos diante da sufocante onipresença do Estado soviético. É horror atrás de horror! Mas, mesmo em meio ao caos, a mensagem que Grossman nos deixa é positiva. Os Chápochnikov e aqueles que o cercam, mesmo com todos os seus medos, defeitos, erros e contradições, transpiram humanidade. Sua batalha não é a do front, mas uma outra, muito maior. É a batalha de quem luta para manter a sua humanidade em tempos desumanos. A saga da família é um verdadeiro testemunho e manifesto em defesa da vida e da liberdade. Grossman trabalha aqui com a ideia de que mesmo sob a guerra, a fome, o frio, a doença e a opressão, o espírito humano, aquilo que trazemos em nosso íntimo, o que há no mais recôndito de todos nós, prevalece.


          A obra também nos permite entender como os acontecimentos da Segunda Guerra ajudaram a moldar o espírito russo e a reacender a chama do nacionalismo exacerbado. Stalingrado levou o povo a uma reinterpretação dos fatos que antecederam a guerra e até mesmo o massacre de 37 passou a ser encarado de outra forma. O que até então era visto como o país do atraso e das injustiças sociais, passou a ser visto como o país da glória. Nas palavras de Grossman: "a palavra russo voltou a ter conteúdo vivo". A união do povo na defesa de Stalingrado decidiu a guerra, mas também selou o destino do povo russo sob as implacáveis garras do Estado soviético. É um livro que coloca o nazismo e o stalinismo lado a lado e deixa vários alertas sobre a cegueira do nacionalismo. Ao longo da leitura, vamos perceber que os subordinados de ambos os lados não passavam de peças de tabuleiro para seus líderes, e o pior, muitos percebiam isso e se resignavam, seja por medo ou pela "lavagem cerebral" empreendida pelos governos.

          Em uma de suas passagens mais memoráveis, o nazista diz para o soviético: "Quando olhamos um no rosto do outro, não olhamos só para um rosto que odiamos; olhamos para um espelho. Essa é a tragédia da nossa época [...] Dois polos! Claro que é isso! Se isso não fosse absolutamente verdade, essa nossa guerra horrorosa não estaria acontecendo. Sim, sim, nós somos seus inimigos mortais. Mas a nossa vitória é a sua vitória. Compreende? E, se vocês vencerem, nós vamos perecer, mas estaremos vivos na sua vitória. É um paradoxo: perdendo a guerra, ganharemos a guerra, vamos nos desenvolver de outra forma, mas com a mesma essência [...] Há dois grandes revolucionários no mundo: Stálin e o nosso guia. A vontade deles fez nascer os Estados nacional-socialistas. Para mim, a amizade com vocês é mais importante que a guerra com vocês pelos espaços do leste. Construímos duas casas que devem permanecer lado a lado."

          Mais à frente, Grossman chega a seguinte conclusão: "O fascismo e o ser humano não têm como coexistir. Quando o fascismo triunfa, o ser humano para de existir, restando apenas criaturas de aspecto humano que sofreram modificações internas. Mas quando triunfa o ser humano, dotado de liberdade, discernimento e bondade, o fascismo perece, e os que haviam sido subjugados voltam a ser gente." Considerando a equiparação feita entre o nazismo e o stalinismo, podemos dizer que o mesmo é válido para qualquer situação que oprima o indivíduo ou que o prive de sua liberdade. O próprio livro de Grossman, também um sobrevivente, é uma prova disso. "Vida e Destino" é um triunfo da humanidade contra tempos obscuros e contra um sistema opressor.


          Sem dúvida, uma das leituras mais impactantes que já fiz. E a alcunha de "Guerra e Paz do século XX", que a princípio achei muito pretenciosa, acabou por fazer todo o sentido. O romance de Tolstói foi lido e relido por Grossman durante a Segunda Guerra e suas influências são claras, mas "Vida e Destino" é uma obra que traça o próprio caminho, um caminho obscuro, é verdade, e justamente por isso, por essa proximidade com o nosso tempo, tem um poder muito maior de conversar com o nosso contexto do que a obra que o inspirou. Seus alertas sobre o nacionalismo, regimes totalitários, antissemitismo e programas nucleares continuam valendo para o nosso século, infelizmente. Mas a incansável luta para preservar nossa humanidade, apesar de desafiada todos os dias, também continua. E essa talvez seja a grande guerra de nosso século.

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