RESENHA: Diário de um Homem Supérfluo - Ivan Turguêniev


          Concebido durante a forte repressão imposta pelo regime de Nicolau I, "Diário de um Homem Supérfluo" teve que esperar até 1856 para, sob os ares mais liberais de Alexandre II, ser publicado sem cortes. A obra colocou no mapa da literatura russa uma de suas figuras mais emblemáticas: o homem supérfluo. Dentro do contexto russo, "homens supérfluos são caracterizados da seguinte forma: jovens de origem nobre, dotados de grande capacidade intelectual e dos mais elevados princípios morais, mas também incapacitados para a ação, para a luta em nome de seus ideais, tanto devido ao sistema repressor sob o qual estão submetidos quanto à própria educação que receberam." Tchulkatúrin é um desses homens e, em seu leito de morte, decide escrever um diário.

          E é a este diário que vamos ter acesso durante a leitura. Seu cerne é o amor não correspondido por uma jovem da província, Liza. Aqui entram em cena todas as nuances da infeliz trajetória de Tchulkatúrin: o lar conturbado, a infância solitária, a falta de traquejo social e a dificuldade em se relacionar. Ele é o perfeito homem supérfluo, um estrangeiro em sua própria terra, e ao longo da leitura iremos acompanhar de perto todos os desdobramentos que isso acarreta na pobre vida dessa alma atormentada. Turguêniev explora o lado psicológico do personagem e também coloca muito de si nele, dotando-o de traços autobiográficos. Afinal, o escritor também cresceu em um lar deturpado, não pôde viver com plenitude o amor de sua vida (sua amada era casada com outro), e, de certa forma, foi ele também um estranho no ninho, forçado a passar longos períodos longe de sua pátria.


          A narrativa evoca os tormentos de um homem que está á beira da morte, mas ela, a morte, não é o principal tema aqui. Tchulkatúrin sofre mais pela vida não vivida, pela falta de amor e por não ter encontrado seu lugar no mundo em sua breve passagem sobre a terra. Nas últimas páginas do diário, escreve: "Estou morrendo... Um coração apto e pronto para amar logo deixará de bater. Será que se apagará para sempre sem ter conhecido uma única vez a felicidade e sem ter se dilatado uma única vez sob o doce fardo da alegria? Ai! Isso é impossível, é impossível, eu sei... Se ao menos agora, ante a morte - apesar de tudo, a morte é algo sagrado, ela engrandece toda criatura -, alguma voz amável, triste e amiga entoasse uma canção de despedida para mim, uma canção sobre minha própria desgraça, talvez me resignasse a ela. Mas morrer na solidão é uma estupidez..."

          A edição de 34 conta com tradução de Samuel Junqueira, que também assina o prefácio, muito rico em contextualizar a obra dentro da literatura russa. É um livro que não só conversa com o contexto russo do século XIX, sendo uma das obras definitivas dessa literatura, como tem poder de atingir a todos os que se sentem deslocados neste mundo. Embora não traga nenhum alento - o livro é de um fatalismo exacerbado, - ainda assim tem o poder de mergulhar o leitor em um profundo estado de reflexão e, por que não?, de melancolia, convidando-o a refletir sobre a própria existência.

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