RESENHA: Esperando Godot - Samuel Beckett


          Escrita em 1949, numa Paris ainda profundamente marcada pela ocupação alemã, e encenada pela primeira vez em 1953, "Esperando Godot" é uma tragicomédia em dois atos, expoente do chamado teatro do absurdo. A obra é a principal responsável por alavancar a carreira do escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett, que mais tarde viria a ganhar o Nobel de Literatura. Uma estrada, uma pedra, uma árvore, uma lua ocasional e dois vagabundos, é nesse cenário esquálido e minimalista que se desenrola a trama, se é que se pode chamar assim. Os vagabundos são Vladimir e Estragon. Juntos, eles esperam por Godot. Mas, quem é Godot? Quando chega? E de onde vem? Isso ninguém sabe. O jeito é esperar... "Nada a fazer."

          Acometida por um tédio mordaz e uma angústia pungente, a dupla, feito macacos enjaulados, usa de todas as suas artimanhas para passar o tempo. Mas, o que é o tempo? Nas palavras de um visitante enigmático: "Não vão parar de me envenenar com essas histórias de tempo? É abominável! Quando! Quando! [...] um dia, nascemos, um dia, morremos, no mesmo dia, no mesmo instante, não basta para vocês? Dão a luz do útero para o túmulo, o dia brilha por um instante, volta a escurecer." O que veremos aqui é a condição humana posta a nu! Vladimir e Estragon encarnam o ser humano em todo o seu esplendor de ridículo, estúpido e desprezível. A obra provoca riso, mas também desconforto. E a coisa fica ainda mais sombria quando Beckett quebra a quarta parede, fazendo com que, a certa altura, os personagens se dirijam diretamente à plateia: "espetáculo admirável".


           Muitas são as interpretações em torno da peça e Beckett nunca deu muitas pistas. Pelo pouco que já li sobre, o dramaturgo parecia defender a ideia de que a arte não tem que, não tem obrigação com nada. Se via livre e se incomodava mais com aqueles que o questionavam em busca de um significado fácil do que com aqueles que abandonavam o teatro no meio da apresentação, sob a alegação torpe de que "nada acontecia" na peça. Gostava da abstração e do poder de provocar diferentes reações que sua obra tinha. Ficou particularmente intrigado com um prisioneiro que havia visto na peça uma espécie de analogia da própria situação, chegando até mesmo a haver uma intensa troca de correspondência entre ambos.

          Alguns acreditam que Godot seja Deus, hipótese essa descartada pelo próprio autor. Já outros, defendem uma relação com o contexto histórico em que foi concebida: o período pós-guerra e suas cicatrizes. Penso que, talvez, Godot seja a morte e todos nós sejamos Vladimirs e Estragons em nossas "rodinhas de hamster", tentando desesperadamente preencher o vazio e falhando miseravelmente. Ou talvez a dupla simbolize os dois lados de uma mesma consciência: Estragon, aquele que já foi calejado pela vida e se resignou; Vladimir, aquele que ainda tenta se apegar a alguma esperança, mesmo que tímida, e é acometido por raros momentos de uma lucidez melancólica. No fim, não faz muita diferença. Ambos são vítimas do horror da vida!

(Estragon, à esquerda; e Vladimir, à direita - na adaptação de Michael Lindsay-Hogg)

          Uma coisa é inegável: o poder que a obra tem de conversar com diferentes contextos, sejam eles filosóficos, psicológicos, religiosos ou políticos, e de, ainda hoje, intrigar leitores e espectadores. "Esperando Godot" é uma obra que incomoda e provoca o leitor, convidando-o a refletir sobre o sentido da vida (ou a falta dele), assim como Vladimir faz a certa altura: "Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi desta jornada? [...] Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo da terra, o coveiro ajuda, lento, com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto dos nossos gritos. Mas o hábito é uma grande surdina." Tudo isso para, no fundo, chegarmos a mesma e fatal conclusão da dupla: "nada a fazer."

          A edição da Companhia das Letras conta com tradução e posfácio do professor Fábio de Souza Andrade. O volume ainda traz dois textos críticos assinados por Ronan McDonald e Steven Connor, o primeiro destacando os impactos da obra no meio artístico e ressaltando seu poder de conversar com diferentes contextos históricos (do apartheid sul-africano à passagem do furacão Katrina em Nova Orleans, passando pelo Cerco de Sarajevo e os conflitos na Palestina), e o segundo contextualizando "Godot" dentro da obra Beckettiana. Fechando o pacote, uma ilustração do pintor alemão Georg Baselitz estampa a capa.

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