RESENHA: Ficções - Jorge Luis Borges


          Publicada originalmente em 1944, "Ficções" é uma coletânea de contos do escritor argentino Jorge Luis Borges. O volume, dividido em duas partes, reúne narrativas dos cadernos "O jardim de veredas que se bifurcam" (1941) e "Artifícios" (1944). São histórias que trafegam entre o fantástico e o real e que, mesmo tão distintas, compartilham um quê de estranhamento. Para tecê-las, Borges lança mão de livros fictícios, falsas biografias, paradoxos temporais, o mundo dos sonhos, guerras, espionagem, assassinato, sociedades secretas, temas bíblicos e a morte. Mas a variedade não se resume à temática, o autor também é muito inventivo no narrar da história - em alguns casos, fazendo o uso de textos acadêmicos para defender autores e obras que sequer existiram. O título "Ficções" faz todo o sentido aqui, pois é um livro que realça o poder que a mesma tem de impactar a realidade.

          Alguns dos meus contos favoritos foram: "As ruínas circulares", que fala de um sonhador tomado pela obsessão de sonhar um homem e trazê-lo ao mundo real, mas durante o processo acaba por descobrir a insignificância da própria existência. "A loteria da Babilônia" nos apresenta um sistema de loteria diferente, onde a Companhia, como é chamada, não só sorteia prêmios em dinheiro como também prisões, castigos e até mortes. Essa foi a solução que a organização secreta encontrou para que o povo não perdesse o interesse em jogar. O problema é que o tempo passa e ninguém mais sabe o que é ou não obra da Companhia, nem mesmo se sabe se ela algum dia realmente existiu, mas todos continuam jogando e a loteria se torna então uma espécie de caos necessário, talvez uma analogia às vicissitudes da vida e a falta de sentido da mesma.


          Em "A biblioteca de Babel", adentramos uma biblioteca de proporções imensuráveis que supostamente retém todo o conhecimento humano, bem como as possiblidades de realidade. Porém, seus livros parecem estar numa linguagem desconhecida e ninguém consegue decifrá-los. Pessoas formam grupos para investigar, outras para destruir. Há ainda aquelas que enlouquecem, brigam ou se suicidam. O conto reforça a ideia de que quanto mais possibilidades temos diante de nós, menos certeza temos sobre qualquer coisa, inclusive sobre nós mesmos.

          "Funes o memorioso", o meu favorito, narra a história de um jovem que sofre um acidente e desenvolve uma espécie de memória sobre-humana. Ele não apenas consegue acessar memórias de toda a sua vida pregressa, como aprende novas línguas e desenvolve fórmulas matemáticas. Porém, não há vida em seu raciocínio. Ele apenas cataloga tudo o que vê, sem participar da vida ao redor. É um conto que fala sobre a importância de se esquecer. Precisamos pagar um preço pela nossa humanidade e aceitar que somos falhos, não absorver toda informação é um processo natural e o fato de conservarmos melhor as memórias que estão ligadas a traços afetivos é um lembrete constante disso. Do contrário, não passaríamos de robôs.


          Fora esses, o livro possui muitos outros contos interessantes que propõem profunda reflexão e debate acalorado. Os fãs mais assíduos de Borges dizem que lê-lo é uma experiência única - experiência esta que eu nunca havia tido até então e que agora posso corroborar. Geralmente, livros de contos possuem muitos altos e baixos, mas aqui a coisa é realmente nivelada por cima. Suas narrativas ficam ecoando em nós e, dias, semanas ou até meses depois, ainda nos pegamos pensando nelas e até mesmo chegando a novas conclusões. Confesso, é um pouco desafiador também. Borges não é o tipo de autor que entrega as coisas de mão beijada, suas narrativas exigem algo do leitor, mas isso só torna a experiência de leitura ainda mais rica, recompensadora e única. "Ficções" é o tipo de livro que presenteia aqueles que gostam de se debruçar sobre o que foi lido e não apenas guardar o volume de volta na estante e partir para o próximo.

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