Sigismund Krzyzanowski é daqueles autores que, devido aos rigores do regime stalinista, pouco pode publicar em vida. Somente nos anos 80, mais de trinta anos após sua morte, é que sua obra foi resgatada e teve o devido reconhecimento. "O Marcador de Página e Outros Contos" reúne seis narrativas curtas escritas entre 1926 e 1939. São histórias que partem de premissas absurdas para tecer críticas sutis (muito inteligentes, por sinal) ao governo e à sociedade soviética. Narrativas com um pezinho no realismo fantástico e que aproximam a literatura russa da chamada literatura do absurdo. Logo, é uma leitura que poderá agradar tanto os fãs de Gabo e Borges, quanto os apreciadores de Kafka e Beckett.
Um estranho vendedor bate à porta do morador de um cubículo e apresenta um produto mágico, capaz de esticar as paredes: "O Quadraturin". O homem passa então a alargar o seu quarto, mas isso se torna um problema quando os passos da senhoria e dos fiscais da "Comissão de Moradia" ecoam pelos corredores do prédio. E o que até então parecia uma dádiva se transforma em terror, numa clara alusão ao rigoroso controle da recém instalada URSS.
O conto que da título ao livro fala de um "caçador de temas", um escritor de imaginação fértil e olhar arguto, capaz de usar tudo a seu redor como matéria-prima para criar suas historietas. Mas ele acaba esbarrando na figura implacável dos redatores, que sempre recusam seus escritos sob a acusação de serem prematuros demais para a época. O conto reflete a situação em que se encontrava a literatura russa após a revolução de 1917 e deixa implícita a censura imposta pelo regime soviético, algo que o próprio autor sentiu na pele.
Após uma série de guerras e catástrofes ambientais, os recursos naturais da Terra finalmente se esgotaram. A "Comissão para a Pesquisa de Novas Formas de Energia" promete uma bolada para aquele que descobrir novas fontes de energia. Eis então que surge a proposta do professor Lekr: "Meu projeto é simples: proponho utilizar a energia da raiva, espalhada por um grande número de seres humanos." Essa é a premissa de "O carvão amarelo", onde uma nova era industrial é inaugurada e a sociedade acaba por atingir uma espécie de utopia. Mas a que preço?
Embebido de humor, "A décima terceira categoria da razão" conta a história do morto que se atrasou para o próprio enterro e agora, com a ajuda do coveiro, vaga pelas ruas e pelas repartições públicas na tentativa de "regulamentar" sua situação. Com nuances da filosofia de Kant, a narrativa também parece evocar os labirintos burocráticos aos quais o regime stalinista submetia o povo.
Um homem apaixonado vê o próprio reflexo nos olhos da mulher amada. Mas algo está errado, o reflexo parece estar se mexendo lá dentro... Ah, é um homenzinho da pupila! Ele passa então a viver dentro desse olho, mas, depois que o amor acaba, cai em um limbo onde estão outros homenzinhos da pupila, amores passados. Juntos, os esquecidos refletem sobre o amor e o esquecimento e tentam captar qual seria o momento exato em que começamos ou deixamos de amar.
Fechando o volume, temos "O cotovelo que não foi mordido". Aqui conhecemos um homem que tem como objetivo de vida: morder o próprio cotovelo. Sua excentricidade vai parar nos jornais e dá início a toda uma nova corrente filosófica conhecida como "cotovelismo". O governo não fica atrás e também se aproveita do tema, lançando uma loteria onde as pessoas apostam se o homem conseguirá ou não morder o cotovelo. Por fim, o homem só é explorado, indo parar primeiro em um circo e depois em uma jaula onde as pessoas pagam para vê-lo tentando desempenhar a façanha. O final é triste e faz pensar a forma como a sociedade lida com o não habitual.
Felizmente a obra de Krzyzanowski foi resgatada, pois não vejo nada similar dentro da literatura russa (pelo menos dentro do que li). Essa mistura de realismo mágico, literatura do absurdo e contexto russo gerou contos divertidos de serem lidos e ao mesmo tempo profundos e sagazes em suas críticas. O único adendo é que para aproveitá-los melhor, para captar o que está nas entrelinhas, é preciso entender um pouco do contexto da União Soviética. Não é um livro que eu indicaria, por exemplo, para quem busca um primeiro contato com a literatura russa. Embora, como já mencionado, também possam ser lidos apenas com o intuito de divertir.
(Sigismund Krzyzanowski)
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