RESENHA: A Relíquia - Eça de Queirós

          Eça de Queirós é daqueles autores que sempre me remeteram aos temidos clássicos obrigatórios dos tempos de escola. Apesar de não tê-lo lido nessa época (pelo menos não que me lembre), foi um preconceito que acabou se enraizando e que perdurou por um longo tempo. Confesso que, se não houvesse recebido o livro em parceria com a UNESP, dificilmente o pegaria pra ler. Mas, cá estou eu com o volume em mãos e mais um preconceito que caiu por terra.

          Clássico da literatura portuguesa, "A Relíquia" foi publicado originalmente em 1887. Inspirada nas viagens empreendidas pelo autor no Oriente Médio, a obra usa de uma interessante mescla de realismo e elementos fantásticos para narrar as desventuras de Teodorico Raposo. Órfão, nosso protagonista vive sob a tutela da tia, uma solteirona avarenta e fervorosa religiosa. Criado sob os rigores de uma educação eclesiástica, encontra nos prazeres mundanos a vazão para a vida claustral imposta pela megera. Quando descobre que a tia é detentora de uma gorda herança, traça o objetivo de cair nas graças da velha, fazendo-se temente a Deus enquanto, às escondidas, se entrega às delícias da carne feminina.

          Quando surge a oportunidade de uma peregrinação à Terra Santa, nosso protagonista vê aí a sua grande oportunidade! Longe do olhar inquisitivo da velha, poderia não só se regalar de prazeres como ainda gozar de uma volta triunfal, "purificado" aos olhos da tia. Teodorico parte então rumo à Palestina, com a incumbência de trazer para a tia uma relíquia sagrada, aquela que irá alçá-lo ao status de quase santo aos olhos da velha e que irá comprar de vez a entrada de seu nome na tão almejada herança. Vamos acompanhar então as peripécias de Teodorico Raposo e seu amigo Topsius, uma espécie de arauto da ciência, nas Terras Santas. Uma jornada repleta de história, misticismo, beldades orientais e muito humor.


          O romance é uma crítica à hipocrisia religiosa, mais diretamente voltada à Igreja católica, e que também irá fazer algumas críticas à sociedade portuguesa, que ainda funcionava sob um manto obscuro de maquinações, influências, apadrinhamentos, etc. Apesar de toda a sua importância (o livro praticamente inaugura uma nova forma de se fazer realismo dentro da literatura portuguesa), a leitura, eu confesso, foi de altos e baixos para mim. A ironia do autor foi o que mais gostei, sempre achei que criticar enquanto se faz rir é arte para poucos e Queirós é um deles. Por outro lado, é um romance do século XIX e que não está imune à cenas de tom novelesco e longas passagens com descrições enfadonhas (principalmente na parte III). Meu pressentimento de "clássico obrigatório dos tempos de escola" talvez não estivesse tão errado, afinal.

          Ainda assim, é uma leitura que vale a pena, não só para conhecer uma das pedras fundamentais da literatura portuguesa como para se deliciar com a ironia queirosiana. E, dois séculos depois, a crítica central do romance não perdeu o gume. A figura de Teodorico ainda está em voga e se assemelha muito aos falsos profetas que vemos por aí, se aproveitando da fé e da inocência alheias para arrancar dinheiro do povo. Dizem que um dos principais poderes das obras clássicas é o de continuar conversando com diferentes contextos, não importa a época, não importa o lugar, e isso "A Relíquia" faz muito bem.

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