Publicado originalmente em 2017, "Temporada de Furacões" se tornou um fenômeno da literatura mexicana contemporânea e causou certo furor quando saiu por aqui, em 2021. Dotada de uma narrativa cortante e sem fôlego, a obra nos conta a história do vilarejo ficcional de La Matosa e seus habitantes desgraçados. A trama tem início com a descoberta de um cadáver putrefato, boiando às margens de um rio desolado. O corpo pertence à Bruxa, uma figura cercada de misticismo e que frequentemente era alvo do preconceito e da violência do povoado. "Quem teria matado a Bruxa?" Essa seria a pergunta primordial em torno da qual desenvolver o romance, certo? Seria, se essa fosse uma história policial...
Ao longo de oito capítulos vorazes, Fernanda Melchor destrincha a trajetória daqueles que, de uma forma ou de outra, estão ligados ao assassinato. Vidas despedaçadas que se entrelaçam num elo de miséria, dor, ódio e violência. Uma corrente sem fim que não parece nem um pouco disposta a deixar essa terra maldita e que é capaz de perdurar por gerações. Esse é basicamente um livro sobre violações. Violação sexual, de direito, de liberdade, de infância. Violação de tudo quanto é jeito. Violação de vida, acima de tudo.
(Fernanda Melchor)
A narrativa, próxima a um fluxo de consciência, se dá no melhor estilo Saramago - isto é, sem parágrafos. Mas isso não é mero artifício estético. É preciso dar cadência. Mas que cadência se da quando se trata de assassinato estupro vício raiva sangue dor morte preconceito abandono hipocrisia descaso? É uma história que tem urgência em ser contada e que, quando começar a ser, descamba para o desespero. É como forçar alguém a reviver um episódio traumático. A coisa sai, como se quisesse ser expulsa, simplesmente é vomitada. Sai como um furacão.
Latina, é uma obra que, apesar da distância geográfica, conversa muito com o nosso contexto. Basta ligar no noticiário ou até mesmo olhar ao redor para ver dramas parecidos com os relatados aqui. Dramas esses, aliás, inspirados em fatos, como explicado pela própria autora ao fim do livro. É uma leitura que provoca sentimentos complexos e conflituosos. Se por um lado a leitura é repleta de passagens indigestas e dolorosas, por outro é extremamente envolvente e viciante, do tipo que a gente lê uma palavra e fica completamente preso ao livro - muito por conta desse fluxo narrativo. Como pode uma coisa provocar asco (pelo tema) e fascínio (pela forma como é contada) ao mesmo tempo? Enfim, coisas da literatura...
Ah, acho que nem preciso comentar sobre os gatilhos óbvios, que são: todos. Leitura nem um pouco indicada para leitores mais sensíveis!
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