RESENHA: O Capote e Outras Histórias - Nikolai Gógol

          Sempre digo que começar pelos contos é a melhor forma de se conhecer um novo autor, mas com Gógol a coisa acabou se dando de forma diferente pra mim. Comecei pelos romances e novelas, e só agora, depois de um longo caminho percorrido na literatura russa, foi que peguei pra ler suas narrativas mais curtas. Mas isso acabou me dando uma perspectiva interessante sua obra e me fez perceber, meio que em "retrospectiva", o quanto ela foi influente. Afinal, quem nunca ouviu falar de "O capote" ou "O nariz"? Contos que foram uma verdadeira escola para escritores como Dostoiévski e Krzyzanowski, onde as agruras do realismo abraçam o fantástico, seja para denunciar as injustiças sociais, criticar o status quo ou fazer rir.

          O livro reúne cinco contos escritos entre 1833 e 1842, três deles centrados na fase mais satírica e clássica do autor e outros dois do chamado "ciclo ucraniano". O primeiro grupo é formado basicamente por histórias que colocam cidadãos ordinários e pequenos funcionários em situações absurdas, pra não dizer esdrúxulas. No conto que da título ao livro, um homem tem o seu capote roubado e, na tentativa de recuperá-lo, acaba se perdendo no labirinto burocrático sem fim. Em "Diário de um louco", um humilde trabalhador se apaixona pela filha de um general, inacessível graças à rigidez da estrutura social da Rússia tsarista. Impossibilitado de viver seu amor com plenitude e ridicularizado pelas pessoas à sua volta, ele acaba sucumbindo à loucura. O clássico "O nariz" traz o hilário caso do oficial que perdeu o nariz e viu o órgão assumir posições sociais que almejava para si. Uma verdadeira sátira à estratificação social da época, tão apegada a títulos e encargos. Dessas histórias pude perceber muita coisa que ecoaria em Dostoiévski, principalmente no que diz respeito ao foco nos elos mais ordinários da sociedade, que estavam apenas começando a conquistar seu espaço na prosa russa.

          Já as duas últimas histórias possuem um tom bem diferente. Ambientadas no campo, exploram com riqueza as crenças e as tradições ucranianas, trazendo entre seus personagens criaturas fantásticas como demônios, bruxas e gnomos. São narrativas mais cômicas e que destoam um pouco das demais por não ter como foco a crítica social e as repressões de Nicolau I. Confesso que gostei bem mais dos contos do primeiro ciclo (sou fã do Gógol sarcástico), mas deve-se levar em conta que um período de quase dez anos separa os contos "ucranianos" dos "petersburguenses", o que acaba permitindo ao leitor perceber o quanto a escrita de Gógol evoluiu nesse período. "Noite de Natal", conto que narra as travessuras do diabo e sua amiga bruxa em uma aldeia pacata, certamente foi uma influência para Bulgákov e seu "Mestre e Margarida".

          Regionalista, cômico, crítico, político, satírico e fantástico, aqui temos Gógol para todos os gostos. A editora 34 foi muito feliz na curadoria dos contos reunidos neste volume, permitindo ao leitor conhecer as várias facetas do autor. Seja numa Petersburgo cinzenta e opressora, seja num campo em meio às criaturas mágicas, o gênio narrativo prevalece e o volume como um tudo rende uma ótima leitura. Experiência essa enriquecida ainda mais com um belo posfácio do renomado tradutor Paulo Bezerra. Sem dúvida, aqui está uma grande porta de entrada para a literatura russa!

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