RESENHA: As Brasas - Sándor Márai

          Sándor Márai é um daqueles autores clássicos que, não sei porquê, eu vinha sempre adiando a leitura, mesmo com os inúmeros elogios que via por aí. Depois de muito tempo, finalmente desencalhei "As Brasas" da minha estante. E que livro! A obra narra o reencontro de dois amigos após um hiato de mais de quarenta anos. Sabemos que algo aconteceu entre eles, mas não sabemos os motivos que levaram ao rompimento, se é que houve algum. Em uma noite fatídica, o longevo e recluso general Henrik recebe o velho amigo Konrad em seu castelo com ares góticos, em meio às florestas cárpatas. No jantar à luz de velas, o passado, assim como um fantasma, ocupa seu lugar na mesa. É chegado então o momento de pôr tudo em pratos limpos.

          Antes de mais nada, é preciso dizer que esse passado envolto em mistério é o que irá ditar os rumos da leitura, logo, esse é aquele tipo de livro que quanto menos você souber, melhor. Por isso, não vou me estender muito aqui. A "conversa" entre os dois amigos (conversa entre aspas porque o que temos aqui se assemelha muito mais a um monólogo) passa por toda a vida pregressa dos dois, desde o desabrochar da infância, o despertar das paixões, as vicissitudes da vida adulta e, finalmente, a resignação da velhice. Notamos que o passado tem um peso enorme, principalmente para o anfitrião, que parece ter passado esses mais de quarenta anos remoendo os acontecimentos de outrora. A narrativa se dá entre flashbacks e seus momentos de melancolia e reflexão, isso quando não está indagando ou confrontando o amigo mais diretamente.

          A obra aborda temas como amizade, paixão, inveja, medo, solidão, escolhas, envelhecimento e, acima de tudo, as complexidades das relações humanas e a vida como ela é. Também é um livro que tem muito de autobiográfico. Márai foi um escritor que viveu grande parte de sua vida em reclusão e acabou por suicidar-se, já na sua velhice, aos 88 anos. Talvez o romance tenha sido um exercício, uma tentativa do autor de, no auge de seus 40 anos, acertar as contas com o próprio passado e com a solidão. A obra permite ainda um vislumbre do que era a vida aristocrática no Império Austro-Húngaro, na turbulenta virada do século XIX para o XX. Tudo isso com uma sensibilidade ímpar, mas também com cortes que estapeiam o leitor na cara, verdadeiros choque de realidade. Muitas páginas desse livro servem como lições de vida, embora nem todas sejam fáceis de digerir. Para exemplificar o que estou dizendo, deixo abaixo uma das passagens que mais me pegaram:

          "Ser diferente do que somos, de tudo o que somos, é o desejo mais nefasto que pode queimar num coração humano. Pois a única maneira de suportar a vida é se conformar em ser o que somos aos nossos olhos e aos do mundo. Devemos nos contentar em sermos feitos de uma certa maneira e em sabermos que, uma vez aceita essa realidade, a vida não nos louvará por nossa sabedoria, ninguém nos conferirá uma medalha de honra ao mérito só porque nos conformamos em ser vaidosos e egoístas, ou calvos e barrigudos não, em troca dessa tomada de consciência não obteremos prêmios nem louvores. Devemos nos suportar tais como somos, este é o único segredo. Suportar nosso caráter, nossa natureza profunda, com todos os seus defeitos, seu egoísmo e sua cupidez, que não serão corrigidos nem com a experiência e nem com boa vontade. Devemos aceitar que nossos sentimentos não são correspondidos, que as pessoas que amamos não retribuem o nosso amor, ou pelo menos não como gostaríamos. Devemos suportar a traição e a infidelidade, e sobretudo a coisa que nos parece mais intolerável: a superioridade intelectual ou moral do outro."

(Monumento em homenagem a Sándor Márai, em Budapeste)
        
          Clássico da literatura húngara, "As Brasas" é uma narrativa poderosa, construída com um o primor e uma elegância que poucos escritores conseguiram atingir. Márai é, sem dúvida, dono de umas das escritas mais finas que já vi, sem soar rebuscada ou floreada, mas certeira. A obra parece ter sido escrita com o cuidado de uma peça musical e, assim como a música, é capaz de nos tocar nos pontos mais sensíveis, convidando o leitor para, assim como o anfitrião, lançar um olhar em retrospectiva para a própria vida (alerta de possíveis crises existenciais). Quando esbarro nesse tipo de livro, que eu vinha protelando a leitura há tempos e que se revela uma obra-prima, não fico arrependido de não ter lido antes, pelo contrário, fico encantando em pensar nos tesouros escondidos que ainda tenho aqui pra ler. E "As Brasas" foi uma dessas maravilhosas descobertas pra mim.

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