RESENHA: Homens Interessantes & Outras Histórias - Nikolai Leskov

          Nikolai Leskov foi um grande "tradutor" da linguagem russa falada para a escrita. Sua vivência no campo, as inúmeras viagens e o trabalho que desempenhou lidando com funcionários públicos e senhores de terras se revelaram uma fonte inesgotável de inspiração e recursos narrativos para o escritor. A burocracia das repartições públicas, as virtudes e as canalhices, o sofrimento e o gosto pela vodca, os costumes e as crendices populares, enfim, tudo o que concerne o espírito russo está fielmente retratado em sua obra. E é isso que vamos encontrar aqui.

          O volume em questão reúne sete narrativas publicadas originalmente em periódicos ao longo da década de 1880. Nem todas são o que se pode chamar exatamente de história curta, pois algumas delas passam da marca de setenta páginas. Mas, acredite, a leitura passa voando e ainda deixa um gostinho de quero mais. Como já mencionei, a narrativa de Leskov se assemelha muito a forma oral de se contar uma história e o resultado é uma prosa muito gostosa, como se o autor estivesse, despretensiosamente, nos contando causos (aliás, alguns contos foram realmente inspirados em fatos e histórias que o povo contava). E a ambientação deixa tudo ainda mais imersivo, principalmente nos contos que se passam no campo e que evocam o espírito do mujique russo, com todos os seus costumes, suas crendices, seus vícios e sua fala simples.


          Meus contos favoritos foram: "A sentinela", história de um soldado da Guarda Imperial que largou o seu posto para salvar uma pessoa que estava se afogando, mas deixar a guarita é considerada uma falta gravíssima nos rigores da lei e ele acaba sendo punido por seu ato heroico; "O papão", conto onde o narrador revisita suas memórias de infância, memórias essas recheadas de misticismo e figuras do folclore russo, centradas na figura do "feiticeiro", um velho estalajadeiro que amedrontava a vizinhança, mas no fim tudo não passava de crendice popular e preconceito; e por fim o conto que dá título ao livro, onde um grupo de escritores debate sobre a existência de "homens interessantes" nas camadas mais baixas e ordinárias da sociedade e para isso um deles recorre a um caso que envolve uma trupe de soldados, um roubo e um suicida.

          Leskov pode não ter o mesmo prestígio de outros gigantes da literatura russa, parte disso se deve ao fato de o escritor ter colecionado desafetos com ambas as ideologias que estavam em voga na sua época (conversadores x progressistas), ou seja, era um pensador que desagradava a "gregos e troianos". A forma como ele retratava a sua pátria logicamente não agradava nem um pouquinho ao tsar e, para completar o pacote, o autor rompeu com a Igreja Ortodoxa após atravessar uma crise espiritual, passando então a satirizar os dogmas religiosos (isso fica bem evidente no conto "O expele-diabo", aqui presente). Como resultado, teve pouco reconhecimento ainda em vida, apesar de ser muito celebrado pela geração seguinte de escritores russos. Mas, lendo sua obra, fica evidente que Leskov não deixa nada a desejar para seus conterrâneos mais famosos. Como diria Górki, talvez tenhamos aqui "o mais autêntico dos escritores russos".


          Não poderia deixar de falar sobre a edição da 34, que está impecável tanto da curadoria de contos, quanto na tradução e notas de Noé Oliveira Policarpo Polli, que também assina um posfácio riquíssimo de mais de quarenta páginas e que é uma verdadeira aula sobre o autor.

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