RESENHA: Preferência do Sistema - Ugo Bienvenu

          A ano é 2120 e o mundo atravessa uma profunda crise de armazenamento de dados. Basicamente, está faltando espaço. E para que as pessoas possam continuar alimentando suas redes sociais e consumindo conteúdo insosso, algo precisa ser apagado. Os arquivos a serem destruídos são definidos pelo algoritmo e cabe aos arquivistas tentar defendê-los perante os "juízes", êxito quase nunca alcançado. Yves é um desses arquivistas e não aguenta mais ver obras como "2001: Uma Odisseia no Espaço" ou a poesia de Auden sendo excluídas da face da terra. Não bastasse isso, nosso protagonista também se vê preso a um casamento infeliz, onde o robô da família parece aos poucos assumir o lugar da esposa, inclusive carregando no ventre a filha do casal, ecoando os dilemas do amor líquido em tempos modernos.


          Primeira HQ do francês Ugo Bienvenu a ser publicada no Brasil, "Preferência do Sistema" bebe da fonte dos grandes clássicos da ficção científica, principalmente "Fahrenheit 451" (Ray Bradbury) e "Eu Robô" (Isaac Asimov), embora dotada de um toque mais contemporâneo. É um quadrinho que conversa muito com o nosso contexto e que chega em um momento oportuno, onde a inteligência artificial começa a ganhar força e inflamar debates. Transitando em algum lugar entre o poético e o sarcástico, a trama esbarra em temas como o uso desenfreado das tecnologias, a banalização da arte, alienação, excesso de informação e relacionamentos rasos. A premissa é ótima e é conduzida com maestria... pelo menos até a metade.



          Isso mesmo, o quadrinho começa muito bem, mas se perde um pouco da metade pra frente. O roteiro, até então surpreendente, se torna um tanto previsível e Bienvenu trilha um caminho bobo, a meu ver. Embora tenha lá a sua poesia, a obra acaba perdendo a chance de ser original e em sua reta final soa como um pastiche, tendo como ápice uma vexatória troca de socos entre robôs. Ainda assim, acho que é uma leitura válida pelas reflexões que a primeira parte é capaz de provocar. Só não vá esperando muita coisa, especialmente se você já leu os grandes clássicos do gênero. "Preferência do Sistema" não irá trazer nada de novo. Não diria que é um quadrinho de todo descartável, pode servir para iniciar leitores no scifi, mas, pela forma como a história foi conduzida, fica uma clara sensação de potencial desperdiçado. Em tempo, minha primeira decepção com o catálogo da Comix Zone.


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