RESENHA: Kappa e o Levante Imaginário - Ryunosuke Akutagawa


          Cheguei a esse livro através do filme "Rashomon" (Akira Kurosawa), que mescla e adapta duas narrativas presentes nessa coletânea: "O matagal" e o conto homônimo. A forma como o filme aborda a fé (ou a falta dela) na humanidade me fez querer ir atrás do original, que apesar de bem diferente é tão interessante quanto. Akutagawa foi um mestre da narrativa curta nipônica que levou uma vida atribulada e acabou por suicidar-se quando tinha apenas 35 anos. Sua escrita mescla elementos históricos e fantásticos com um olhar arguto para psicologia humana e um gostinho pelo niilismo, tendo como marca registrada um pessimismo exacerbado para com o mundo e a sociedade ao seu redor. E é isso que teremos aqui, contos de desesperança e trevas que podem te deixar muito mal, especialmente se você já não tem lá muita fé na humanidade. São onze narrativas que cobrem toda a breve e prolífica carreira de Akutagawa, mais abaixo falo brevemente sobre aquelas que mais gostei.


          "Kappa" é sem dúvida um dos contos mais intrigantes da seleção. Aqui, vamos acompanhar o relato de um paciente internado em um manicômio que afirma ter visitado o país dos kappas, criatura  anfíbia do folclore japonês. O paciente descreve com detalhes uma sociedade que difere da nossa no que diz respeito ao sexo, a natalidade, a arte, a política, a justiça, o amor, a morte e muitos outros temas. À primeira vista, a complexa organização social dos kappas se assemelha a uma utopia. Mas, por mais que essa sociedade pareça avançada aos olhos de um humano, ela não conseguiu erradicar certos problemas que permeiam também a nossa, como a depressão e o suicídio. Seria esse um sinal de que a sociedade perfeita não é possível?

          No já mencionado "Rashômon", um homem se esconde em uma ruína para se abrigar da chuva e ali acaba se deparando com uma cena que o faz perder a fé na alma humana e decair na escala moral. Aqui vale destacar um ponto importante em relação a adaptação: enquanto o conto de Akutagawa tem um tom soturno e pessimista, o filme de Kurosawa tem um desfecho um pouco mais otimista e com uma bonita mensagem. É como se a película fosse não apenas uma simples adaptação, mas também uma espécie de resposta ao original. Interessante observar esse contraste entre as duas abordagens.

(Rashomon - Akira Kurosawa)

          Em uma decadente Kyoto, dois irmãos se apaixonam pela mesma mulher. O triângulo amoroso faz parte de um grupo de meliantes sem escrúpulos que comete todo tipo de crime pelas redondezas. Essa é a história que vamos acompanhar em "Os salteadores", uma trama que mescla a paixão ao que há de mais vil na existência humana. Aqui a escrita do autor parece um pouco mais floreada, cheia de metáforas e descrições da natureza, explorando também alguns dos costumes japoneses. Mas não se engane, a narrativa também evoca o que há de pior no ser humano e traz à tona temas como assassinato, estupro e violação de cadáver. Sim, é um conto que pode incomodar e até causar repulsa ao leitor.

          No conto "Inferno", um ambicioso e relapso artista é incumbido da tarefa de pintar, para um nobre, um biombo com o tema do inferno. Seus estranhos métodos e sua obsessão doentia dão ares de horror à narrativa, que mergulha fundo na perversidade humana. Conforme o trabalho avança, traços de sua personalidade sádica vão sendo desvendados, o que faz dessa uma leitura angustiante, e o desfecho é trágico que só. Esse é mais um conto onde transparece o completo ceticismo do autor em relação à bondade humana, aqui facilmente superada pelos sentimentos de um símio.

          Outro destaque da seleção é "O matagal", a outra inspiração de Kurosawa para o filme "Rashomon". No conto, um crime hediondo é cometido em uma região erma e nós iremos acompanhar o julgamento que gira em torno do relato conflitante de diferentes personagens, sendo um deles o espírito do próprio homem que foi supostamente assassinado. É uma narrativa que evoca a fragilidade da verdade e o quanto um fato pode ser suscetível a diferentes interpretações, seja pelas informações limitadas a que temos acesso ou pela defesa da própria honra e moral. No fim, pouco importa qual dos personagens está contando a verdade. O crime por si só é hediondo e seus desdobramentos só mostram o quanto a natureza humana é complexa.


          Fechando o volume, temos o conto "Rodas dentadas". Um triste e angustiante texto em forma de diário autobiográfico onde Akutagawa relata os seus últimos dias antes do suicídio. Aqui, o seu tom niilista está mais acentuado do que nunca e a narrativa traz inúmeros gatilhos para qualquer pessoa que esteja deprimida. A última e perturbadora entrada no diário data de 7 de abril de 1927: "Já não me restam forças para continuar escrevendo. Viver assim é uma tortura indescritível. Alguém poderia me estrangular em silêncio, enquanto durmo?" Apenas dois meses depois, Akutagawa se matou e o conto só veio a ser publicado de forma póstuma.

          Gosto de livros melancólicos, mas poucas vezes me deparei com uma agonia tão palpável quanto a que encontrei neste livro. Talvez o único que se compare nos quesitos dor e sofrimento seja o também japonês Osamu Dazai (que também se suicidou). Aliás, esse foi um caminho trilhado por grandes escritores japoneses: Akutagawa, Dazai, Kawabata, Mishima... A lista é extensa e dá o que pensar. Afinal, esses autores tinham como principal característica uma sensibilidade perspicaz, mas dá pra ser sensível em um mundo tão insensível como o nosso? Talvez esse seja apenas o preço a se pagar por ser assim.

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