RESENHA: Madame Bovary - Gustave Flaubert


          Obra máxima do francês Gustave Flaubert, "Madame Bovary" foi publicada originalmente em 1856, em formato de folhetim. O romance, que foi acusado de ferir a moralidade e a religião, levou cinco anos para ser escrito e é considerado um dos maiores percussores do realismo. Ao contrário do que estamos acostumados a ver em um grande clássico, não temos aqui nenhum retrato político de sua época e a obra não tem a mínima pretensão de retratar um período específico da história de seu país. O que Flaubert aqui faz é voltar o olhar para o que há de mais ordinário e pueril na existência humana. Como resultado, temos uma narrativa desprovida de ação e que se passa em grande parte no campo psicológico das personagens. A história sequer tem vilão (e muito menos herói), ela apenas retrata a vida como ela é, com todos os seus desencontros, absurdos e falta de sentido. Não por acaso, a ambientação se dá na província, longe da agitada Paris, um ambiente mais íntimo e propício para observar mais de perto as mesquinharias que permeiam o nosso rastejar aqui na Terra.

          E é neste contexto interiorano que vamos acompanhar a vida conjugal de Charles e Emma. Ele, um medíocre médico de segunda categoria desprovido de ambições; ela, alma inquieta e entediada que sonha em alçar voo mas se vê presa a sua condição terrestre. Com uma deliciosa ironia (que faz deboche ao romantismo), Flaubert nos coloca a par de todas as nuances de um casamento infeliz. A derrocada de Emma, que busca preencher o seu vazio existencial com casos extraconjugais e compras supérfluas, pode ser sentida página à página, apesar de muito pouco ser dito claramente. É o tipo de narrativa que se desenvolve muito no não dito, com o autor inclusive se "escondendo" ao máximo e deixando para o leitor o trabalho de julgar e tirar as próprias conclusões. A própria figura de Emma, ao mesmo tempo tão sórdida e enigmática, parece brincar com os nossos sentimentos, exercendo ora fascínio, ora repulsa, e às vezes até excitação nos momentos em que há certo flerte com o erotismo. Ela é a perfeita personificação da mulher infeliz, entediada e incompreendida que deixaria uma marca indelével na literatura mundial e que ecoaria em muitas outras personagens femininas ao longo dos séculos, inclusive em "Anna Kariênina" de Tolstói, onde podemos perceber uma clara influência.


          Flaubert era um escritor altamente perfeccionista, do tipo que corrigia e fazia cortes incansáveis em seu texto de maneira que beirava a obsessão, e isso pode ser sentido em "Madame Bovary", seu primeiro romance publicado. Percebe-se um claro cuidado no desenvolvimento do enredo e também na construção das personagens. Como já mencionado, é um romance em que há pouca ação, o narrador pouco se mostra e os diálogos são escassos, mesmo assim o leitor fica com a sensação de que não está perdendo nada, pois os monólogos e o "não dito" transmitem muito bem o estado de espírito das personagens. É uma leitura muito gostosa e que coloca o leitor na posição privilegiada de um voyeur, permitindo-o acompanhar de perto o que acontece de mais íntimo na alma de suas personagens.

          Saio da leitura com um sentimento muito ambíguo, e ainda não definido, em relação a Emma. Acho muito difícil julgar a vida de alguém, mesmo de alguém fictício. Por mais que possamos sentir empatia, ainda somos incapazes de sentir a dor e a alegria de outro de forma plena. Ainda que gostemos de pensar o contrário, aquilo que trazemos no mais recôndito do coração e do espírito é completamente intransponível e pessoal, um peso (ou uma alegria) que devemos carregar sozinhos até o fim. Emma carregou, tentou buscar as respostas nos livros que lia, nos prazeres da carne, nas compras supérfluas, mas, por mais que tenha se rastejado e se debatido, nada disso a preencheu, morreu incompreendida e ainda foi sepultada com aquilo que mais abominava, seu vestido de noiva. Alma solitária, seu coração não encontrou conexões reais em sua passagem pela Terra. Não a julgo, às vezes estamos fadados a isso e não há muito o que fazer, a gente simplesmente vai aguentando até que um dia acordamos e chegamos a conclusão de que simplesmente não vale mais a pena.

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