Um dos romances mais celebrados do japonês Yasunari Kawabata, "Kyoto" foi publicado originalmente em formato de folhetim, entre os anos de 1961 e 1962, época em que o escritor abusava de substâncias soníferas. A obra narra a trajetória de Chieko, filha adotiva de uma família tradicional da região de Kyoto. Dotada de uma sensibilidade ímpar, a jovem tenta lidar com profundas questões a respeito da sua origem enquanto assiste de forma melancólica a decadência do comércio familiar, diretamente impactado pelo processo de abertura ao ocidente no Japão pós-guerra.
O livro é de fácil leitura e muito gostosinho de ler (teve até um efeito calmante em mim), mas não deixa de debater questões importantes como a busca por identidade e o conflito entre o nosso papel social e aquilo que trazemos em nosso âmago. Pode ser que eu tenha sido influenciado por um podcast que ouvi recentemente, onde o professor Clóvis de Barros debate o tema do "existencialismo x essencialismo", mas vi muito desse conflito em Chieko: uma mulher sem origem definida, mas presa numa sociedade profundamente estratificada como a do Japão e que em diversos momentos ao longo da narrativa terá seu desejo suplantado pelo papel social que deve cumprir. Nem sempre na vida somos totalmente livres para escolhermos os nossos caminhos e com Chieko aprendemos uma lição valiosa: mesmo que o destino nos reserve uma vida privada de alegria sublime, ainda podemos desfrutar de pequenos momentos de felicidade, como apreciar uma a beleza de uma flor ou ouvir o som da chuva caindo no telhado. Gosto de pensar nisso.
Além disso, o livro é um verdadeiro mergulho na cultura japonesa. A cozinha, a arquitetura, os festivais, as crenças e os costumes japoneses, tudo é ricamente explorado e detalhado aqui, embora de forma um tanto melancólica, já que abarca um período de ocidentalização no país. E todo esse sentimento de perda e desorientação é muito bem retratado no personagem Takichiro, pai de Chieko. O patriarca não só tem que lidar com a falência do negócio da família, como tenta assimilar o fim do mundo como o conhecia e o surgimento de novos valores e costumes. Não por acaso, ele passa o romance perambulando por Kyoto, buscando sensações e revisitando locais de sua juventude, e termina procurando afago na alma feminina, tema que o autor explora de forma mais profunda em seu romance "A casa das belas adormecidas". Através de sua relação com a filha adotiva, o livro também aborda de forma muito sensível a relação entre pais e filhos, tão bonita mas também tão complexa. Enfim, trata-se de um romance que pode parecer simplório num primeiro olhar, mas que tem muito em suas entrelinhas.
Esse é o quarto livro de Kawabata que leio e o autor já desponta como um dos meus favoritos da literatura japonesa. A forma como trata temas complexos como a morte, a passagem do tempo e a relação com a natureza de forma simples e sensível, sempre trazendo as miudezas do cotidiano para a trama, trocando o grandioso pelo ordinário, é algo que me fascina e me cativa ainda mais a cada leitura. Felizmente temos bastante material dele publicado no Brasil, a editora Estação Liberdade vem fazendo um excelente trabalho e a biblioteca Kawabata está primorosa, sem dúvida uma das coleções mais charmosas da minha estante.
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