RESENHA: Pais e Filhos - Ivan Turguêniev

          Publicada originalmente em 1862, "Pais e Filhos" é umas das obras mais polêmicas da literatura russa. E para entender melhor essa contenda, é preciso olhar para o contexto de sua publicação. Em 1861, o tsar Alexandre II decretou o fim da servidão na Rússia, fato que mudou drasticamente a organização social do país e que gerou uma série de insatisfações e revoltas, culminando no assassinato do próprio Alexandre, em 1881. O país já estava uma bagunça e Turguêniev, que já havia adiado a publicação do romance anteriormente, decidiu então seguir em frente.

          A expressão "botar lenha na fogueira" talvez nunca tenha feito tanto sentido, pois, coincidência ou não, logo após a publicação de seu livro, uma onda de tumultos e de incêndios tomou Petersburgo. O autor passou então a ser visto como persona non grata, tanto pelos mais velhos - que o acusavam de atiçar o ódio na juventude -, quanto pela nova geração, que não havia gostado nenhum pouco da forma como havia sido retratada no romance. Toda essa desavença levou Turguêniev a se isolar cada vez mais no exterior, em particular na França, que acabaria se tornando uma espécie de segunda pátria para o escritor russo.

 

          Dado o contexto, vamos ao livro. Como o próprio título já entrega, a obra trata do embate de gerações. Em trabalhos como "Diário de um homem supérfluo" e "Rúdin", Turguêniev retratou a geração de 1840, isto é, o cidadão repleto de ideias progressistas mas incapaz para a ação. Aqui, nós iremos encontrar essa geração já envelhecida, eles são os "pais". E a nova geração seriam os niilistas, jovens materialistas dotados de grande energia e potência, prontos a negar quaisquer convenções ou autoridades. Estes são os "filhos". Bazárov é um desses jovens e aqui nós iremos acompanhar a sua estadia na propriedade da família Kirsanov. Sua temporada no campo é marcada pelo embate acalorado com os mais velhos e pelo sentimento de desconexão em relação aos outros jovens. A narrativa se dá quase toda através de diálogos e o romance pouco traz de ação, se passando principalmente no campo psicológico dos personagens.

          O contraste entre as duas gerações é bem assinalado nos conflitos, diferenças culturais e concepções de mundo divergentes, com a geração mais velha sendo ridicularizada por suas crenças e pensamentos conservadores, enquanto a geração mais nova é vista, aos olhos dos mais velhos, como reles, anárquica e desprovida de valores. O interessante é que o autor busca trazer um pouco da perspectiva de ambas as gerações, nos permitindo acompanhar de perto os mais jovens em sua sede de mudanças e os mais velhos em seu estado de consternação, o que, por sua vez, meio que nos impede de tomar partido de uma em detrimento da outra. Afinal, não há geração "certa" ou "errada". Apesar de opostas, uma descende diretamente da outra, quer goste ou não, e guardam suas diferenças, embora tenham lá os seus pontos de intercessão.

          Muitas das particularidades da escrita de Turguêniev estão afloradas aqui, como a sensibilidade para descrever os elementos da natureza, as famosas pausas biográficas e o cuidado especial com a estética do texto. Ainda sobre sua maneira de escrever, o autor declaradamente se interessava mais pelos personagens do que pela trama, e isso fica bem evidente em "Pais e Filhos", onde os personagens são bem lapidados - especialmente Bazárov e Odintsova -, e os acontecimentos são parcos, muitas vezes com o autor recorrendo a certas facilidades e previsibilidades.

          Apesar de ser uma de suas obras mais celebradas, confesso que ainda considero "Memórias de um caçador" e "Rúdin" melhores ou, pelos menos, mais bem acabados . O grande destaque do livro vai para a definição do termo niilista dentro do contexto russo. Aliás, essa é uma palavra que aparece muito dentro da literatura russa, mas que muitas das vezes acaba ficando um tanto vaga ou indefinida. "Pais e Filhos", sim, mostra um exemplo mais claro e prático. Pode não ter sido a primeira a usá-lo, mas com certeza define o termo da melhor forma: "um niilista é um homem que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não aceita nenhum princípio com base na fé, por maior que seja a aura de reverência em torno desse princípio."

          Quanto à edição da Companhia das Letras, ela conta com tradução de Rubens Figueiredo e traz dois textos extras: um assinado pelo próprio Turguêniev (onde ele discorre sobre Shakespeare e Cervantes); e outro por Henry James (trata-se de um ensaio maravilhoso no qual podemos vislumbrar a vida intelectual e literária que Turguêniev levava em Paris, ao lado de escritores como Flaubert, Zóla e o próprio James). Como leitura complementar, recorri aos excelentes "Como ler os russos" (Irineu Franco Perpétuo) e "Lições de literatura russa" (Vladimir Nabokov).

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